Gênio do Ritmo

O dia 26 de junho de 2004 foi histórico: nesta data, o gênio do afrobeat Tony Allen se apresentou pela primeira vez no Brasil e abriu seu camarim para conceder a entrevista que inaugurou os trabalhos da Radiola Urbana. Simpático, respondeu a todas as nossas perguntas e logo depois hipnotizou o público da Choperia do Sesc Pompeia com uma apresentação memorável. O resto é história.

Dizer que o cara é um gênio das baquetas é óbvio demais, redundância pura. Arrumar uma palavra melhor fica pequeno. Para quem não o conhece, a gente apresenta: Tony Oladipo Allen é um músico de finíssima qualidade. Nasceu em Lagos, capital da Nigéria (África), em 1940. Começou a tocar bateria aos 18 anos – aprendeu tudo de ouvido – e não parou mais. Seu grande feito na carreira foi ter criado juntamente com Fela Kuti o afrobeat, estilo que mistura funk, jazz, rhythm‘n’blues e ritmos tradicionais africanos como o juju. “O afrobeat é o som que eu sempre procurei e que sempre vou carregar comigo”, disse Allen à Radiola Urbana, em entrevista concedida em junho de 2004, quando ele se apresentou no Sesc Pompeia (São Paulo). Quem assistiu ao show pôde conferir de perto que o cara continua em plena forma, dominando as baquetas como ninguém e destilando suas inimitáveis batidas quebradas.

Foi em 1964 que Allen conheceu seu maior parceiro. Fela era líder do Koola Lobitos e estava atrás de um bom baterista que tocasse jazz e highlife. Já havia realizado diversas audiências e nenhum músico o satisfazia – até que encontrou Tony Allen. Após ouvi-lo tocar, Fela disparou: “Você é o único cara na Nigéria inteira que toca desse jeito”. E aí já era. Juntaram a música com a vontade de tocar e não deu outra. Os dois formaram durante 15 anos uma das duplas mais importantes do cenário musical do século 20.

Em 1969, a turnê que o Koola Lobitos fez nos Estados Unidos (tendo como base Los Angeles) mudou a vida da dupla para sempre. O grupo excursionou por oito meses pelo país – tempo mais do que suficiente para que Fela entrasse em contato com as idéias de Malcom X, dos Panteras Negras e outras lideranças que defendiam os negros e o afrocentrismo. De volta à Nigéria, não deu outra: Fela radicalizou em suas posições políticas, trocou o nome do Koola Lobitos para Nigeria 70 – mais tarde rebatizada como Afrika 70 – e incorporou referências do funk em suas composições. Nascia ali o afrobeat, um caldeirão de influências e transformações refogadas sobre o fogo de um regime autoritário e sanguinário.

Allen iniciou a carreira-solo em 75, em paralelo ao trabalho que fazia com Fela, e gravou três discos produzidos pelo próprio: “Jealousy”, “Progress” e “No Accomodation for Lagos”. Em 1978, no entanto, a parceria ruiu e o baterista resolveu seguir seu próprio rumo. Depois de gravar “No Discrimination” (lançado em 80), se mudou para Paris (onde vive até hoje). Gravou apenas mais dois discos nos anos 80 e 90 – “N.E.P.A” (88) e “Black Voices” (99) – até recuperar o fôlego triunfalmente no novo milênio, que já registra 3 álbuns: “Home Cooking” (02), “Live” (04) – que inclui uma faixa, “Kindness”, tocada no fatídico show no Sesc Pompéia – e “Lagos No Shaking” (06).

Três anos depois de sua primeira passagem pelo Brasil, seus laços musicais com o país se estreitaram. Sua bateria impulsiona a faixa “Bença, Balanço & Chumbo Grosso”, lançada pelo grupo de hip hop Mamelo Sound System em “Velha Guarda 22” (06). A sessão rítmica foi tirada de uma jam session registrada no estúdio YB e as batidas gravadas ali ainda vão aparecer em futuros trabalho do núcleo de produção Instituto. Em 2006, Allen frequentou novamente o Sesc Pompéia – dessa vez como mero figurante do elenco do Brasilintime, projeto que promove o encontro de veteranos do ritmo com virtuoses dos toca-discos. Volte sempre!

Seus álbuns mudaram ao longo de sua carreira. O sr. incorporou ritmos novos…
Continua sendo afrobeat. Eu coloquei coisas novas, mas a base é o afrobeat. É a evolução do som, do estilo. Eu tento evoluir dentro do afrobeat.

O sr. acha que a evolução vem de estilos como R&B, rap, música eletrônica?
Não, não. Eu ouço todos os estilos de música. Eu gosto de muita coisa. Não tenho um gosto particular por determinada coisa. Você tem que ouvir os outros para poder criar o seu próprio estilo.

O afrobeat é um ritmo muito poderoso e não dá para simplesmente esquecê-lo. Não é isso?
É isso. Não é como outras músicas como o rock e o reggae, por exemplo, que têm uma determinada batida. O afrobeat não é uma batida específica porque estou criando a todo momento, reinventando – especialmente quando fico entediado com determinada batida. Nos meus concertos, por exemplo, apesar de ser afrobeat, você não vai ouvir a mesma batida do início ao fim do show.

“Fela me fez expandir os limites da criação”

Como o sr. criou o afrobeat junto com Fela Kuti ? Vocês costumavam tocar jazz juntos nos clubs de Lagos…
Fela era o cara que eu procurava. Eu passei por várias bandas até encontrá-lo. Eu trocava porque não via evolução. Fela foi a pessoa certa que me levou a expandir os limites de criação. Ele era um gênio e nós nos comunicávamos por telepatia.

Vocês se comunicavam por telepatia?
Com certeza.

Como o sr. o conheceu?
Foi uma baixista que eu conhecia que me apresentou a ele. Fela estava atrás de um bom baterista na Nigéria – ele tocava jazz naquela época. Ele procurou e disse que não havia um baterista bom no país. Até que este baixista disse: “Check somebody out first” (“dê uma olhada em alguém antes”) e depois você toma a sua decisão. Isto foi em 1964. E, desde então, começamos a tocar jazz juntos. Fela me perguntou onde eu havia estudado bateria. Eu disse: ‘Em nenhum lugar, aprendi aqui mesmo na Nigéria.’

O sr. aprendeu tudo de ouvido? Nunca teve aulas?
Nunca. Eu experimento bastante. A bateria é um instrumento que não deve ter limites. Talvez, se eu tivesse tido aulas, eu estaria limitado àquilo que o professor me ensinaria.

O sr. foi influenciado por bateristas como Art Blakey, Max Roach…
Sim. Fui. Eles foram os meus ídolos. Quando eu comecei a tocar eu queria tocar como eles. E consegui. Mas depois comecei a me perguntar: ‘Ok. Eu sei tocar como Blakey, Max Roach, Tony Williams, mas e eu? Quando vou tocar como Tony Allen? E o meu estilo?’

Foi por isso que mais para frente o sr. saiu do Africa 70?
Mas foi no Africa 70 que eu pude experimentar bastante, colocar minhas idéias para fora. Fela era um compositor genial.

O sr. também é…
É. Por isso a gente se comunicava por telepatia.

O sr. ficou triste quando vocês se separaram?
Não, porque ele continuou a ser meu amigo até os seus últimos dias. Algumas pessoas disseram que eu queria arruiná-lo, mas não é verdade. Ficamos 15 anos juntos e foi o suficiente. Uma hora tive de partir.

O sr. pode contar um pouco mais sobre o encontro com o James Brown e os JB’s?
Não conheci James Brown pessoalmente porque quando ele esteve na Nigéria não apareceu nos nossos shows. Apenas os seus músicos, como o Bootsy Collins.

E a história de que o diretor musical dos JB’s ficou colado na sua batera vendo o sr. tocar…
É verdade. Ele ficou ao meu lado durante um concerto. Observava como eu tocava e anotava num papel o estilo da minha batida. Eu vi aquilo e fiquei rindo. Ri muito de ver ele tentando anotar tudo aquilo.

O sr. costumava ouvir James Brown?
Sim. James Brown é um dos músicos que eu mais respeito. Todo mundo no meu país era fã de James Brown.

O sr. começou a tocar com 18 anos e agora já acumula quase 50 anos de estrada. O que você destacaria nesses anos todos de carreira?
A minha dedicação à música, ser um artista dedicado ao que eu acreditava. Quando você acredita no que faz, o resto é o resto.

E o sr. sempre acreditou profundamente na sua música?
Claro. Senão já teria parado.

Atualmente o sr. vive em Paris, mas ainda vai para a Nigéria com frequência?
Estive no meu país há cinco semanas. Sempre estou por lá.

E como o sr. vê o país atualmente comparando com os anos 60 e 70? O sr. acha que a Nigéria está melhor?
Não. Agora é uma loucura total. Mas eu não sou político e não quero falar sobre política. No passado, meu país era melhor. É verdade que os militares ficaram no poder por cerca de 30 anos e eu acho que a função deles não é dirigir um Estado, mas, sim, se preparar para a guerra.

Quer dizer que o sr. não gosta muito de falar de política?
Não gosto. Não sou político e odeio política. É um jogo sujo, muita corrupção.

(Por Thiago Lotufo)
(Fotos: Zé Gabriel)

4 comments

  1. gostaria de baixar as musicas do yellow p dub como faço, perdi tudo da toca do leão

    • Salve Tad! Agora sim, todos os podcasts estão disponíveis para download: soundcloud.com/radiola-urbana

  2. não entendi

  3. Fala caro Tad! Realmente não estão disponíveis para download…

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  1. Brasil é o país do afrobeat! | Radiola Urbana - [...] vídeos abaixo na mente e a memória das entrevistas que tanto Ebo Taylor (AQUI) como Tony Allen (AQUI) já…

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