Autópsia do samba

Romulo Fróes acaba de lançar o sétimo disco de sua carreira — o primeiro, no entanto, sem composições próprias. “Rei Vadio” reúne 14 músicas de Nelson Cavaquinho e traz participações de Dona Inah, Ná Ozzetti e Criolo. O resultado é lindamente perturbador. Leia nossa entrevista com Romulo.

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Cantar a morte é pra poucos. Nelson Cavaquinho tinha essa manha. Em uma espécia de autópsia do samba, o compositor encontrava rara beleza em versos sem medo de soar mórbido. Sinta o drama em “Pode Sorrir” (dele e Guilherme de Brito): “O tempo me ensinou assim / Me respeita até chegar meu fim / Se você me der adeus / Não pense mais em mim / Que eu ficarei com Deus”. “Eu e as Flores” (parceria com Jair do Cavaquinho) é ainda mais letal: “Quando eu passo / Perto das Flores / Quase elas dizem assim / Vai que amanhã enfeitaremos teu fim”. A morte está mais viva do que nunca.

Ambas faixas estão em “Rei Vadio”, disco que Romulo Fróes acaba de lançar com 14 composições deste autor que é sua maior referência. O trabalho é de uma beleza perturbadora. A poesia de Nelson, já cantada por muitas vozes consagradas da música brasileira (Clara Nunes, Elis Regina, Elza Soares etc.), é reprocessada em arranjos que não aliviam para o ouvinte: o baixo acústico de Marcelo Cabral soa muitas vezes como um esmeril rasgando carne, a interpretação de Dona Inah para a citada “Eu e as Flores” traz uma dor que nos hipnotiza e a versão para “Luz Negra” (com participação de Criolo) parece a trilha sonora de um linchamento. Nesse sentido (de explorar o potencial lírico da morte), no quebra-cabeças que Romulo e seu grupo de colaboradores estão montando na música brasileira recente, “Rei Vadio” é uma peça que se encaixa tanto com “Bahia Fantástica” (Rodrigo Campos, 2011) quanto com “Passo Elétrico” (2013) e “Encarnado” (Juçara Marçal, 2014). O tema recorrente, no entanto, nada tem a ver com repetição. Esses discos não se repetem esteticamente, ao contrário, um acrescenta algo ao outro e a sensação é que daqui há 40 anos, como o devido distanciamento, entenderemos todos esses trabalhos como uma narrativa única.

Essa mesma distância no tempo, aliás, parece resignificar cada vez mais “Juízo Final” (Nelson Cavaquinho e Élcio Soares). “Rei Vadio” se despede com ela, em um coro gravado durante a apresentação do bloco da Espetacular Charanga do França no carnaval paulista de 2015. É um fim e tanto, cheio de simbolismos, com vozes anônimas que desafinam nas ruas da cidade que já foi chamada de túmulo do samba. Essa música ganha cada vez mais sentido em suas recentes versões e se consagra como um hino atual. Foi regravada por Seu Jorge e Almaz em 2008, faixa que está na trilha do filme “Linha de Passe” (de Walter Salles e Daniela Thomas); se destacou no repertório do show que Fred 04 fez no evento 73 Rotações; e fez uma improvável apoteose no show de Jards Macalé no Auditório Ibirapuera em 2013 — no dia de seu aniversário de 70 anos. Há um elemento catártico na profecia eternizada nos versos: “Do mal / Será a queimada a semente / E o amor / será eterno novamente”.

Romulo Fróes falou sobre o trabalho, a transformação de sua voz e o mistério da genialidade de Nelson Cavaquinho na entrevista a seguir. Leia.

Desde sempre, você reconhece o Nelson Cavaquinho como seu herói maior na música brasileira. Por quê?
Porque me identifico com seu universo menos luminoso, rebaixado, com sua estranheza, com o que eu chamo de sua beleza difícil. É isso que eu busco com o meu trabalho, criar beleza a partir de elementos não reconhecidamente belos e ninguém mais que Nelson Cavaquinho conseguiu fazer isso na canção popular.

Você usa muito a expressão “samba triste” pra falar dele. Para alguns, pode soar contraditório, já que o samba tem essa associação quase imediata ao carnaval, à alegria, à festa. O que te atrai tanto nessa tristeza? Tem a ver com essa contradição?
Não só o Nelson, mas artistas como Cartola, Paulinho da Viola, Zé Keti e Batatinha, fizeram sua obra a partir desse samba de cadência mais lenta, de letras mais densas e de assuntos mais profundos. É essa vertente do samba que mais me interessa e é esse tipo de arte que mais me influencia, seja na canção popular, seja em literatura, cinema ou artes plásticas. No caso do Nelson, certamente é essa contradição que você identifica o que mais me atrai, mas não a contradição entre alegria e tristeza e sim a possibilidade de haver imensa beleza a partir de elementos tão “desegradáveis” quanto sua voz, seu violão e a morte, tema recorrente de suas canções.

Cavaquinho, mesmo não tendo uma “grande voz” (no sentido técnico de extensão vocal, pelo menos), parece ser o melhor intérprete para suas canções. Isso tem algo de misterioso, já que ele foi cantando por algumas das vozes reconhecidamente mais privilegiadas da música brasileira. E ele claramente desafina, não alcança certas notas, perde o fôlego. Como você interpreta esse “mistério”?
É a mágica do cantautor, esse neologismo que eu gosto tanto. Penso que ninguém canta melhor uma canção que seu próprio autor, ainda que seja este um cantor deficiente no quesito técnico. Ninguém pode sentir melhor as palavras na hora de cantar do que quem as escreveu. Neste sentido acho que o Nelson é uma oitava acima de todos os outros cantautores que eu admiro. Porque não é só que ele não tenha uma técnica apurada, o fato é que sua voz e seu violão beiram o desgradável. A primeira vez que se ouve Nelson Cavaquinho, você não acredita que aquilo possa ter sido gravado. E que esse conjunto aparentemente desagradável possa provocar uma beleza imensa em quem o ouve é pra mim a grande riqueza de Nelson Cavaquinho e o que faz dele meu maior modelo!

Nesse aspecto, é quase impossível não estabelecer uma conexão com a sua própria história. Você lançou no ano passado um disco “Por Elas Sem Elas”, em que canta músicas suas já gravadas antes por intérpretes mulheres como Juçara Marçal e Elza Soares, para falar de dois exemplos que geram um sentimento quase unânime de estarem entre as vozes mais apreciadas de seus respectivos tempos. Como você se sente em relação à sua voz hoje? Reconhece ou busca algo parecido ao que Cavaquinho alcançou nesse sentido? E, ao gravar estas canções, procurou reencontrar algo que você via nas composições e não apareciam nas versões, por melhor que elas fossem?
Infelizmente acho que nunca terei a voz do Nelson, não vivo a vida que ele viveu (ainda bem) e não tomo e nem tomarei a quantidade de cachaça que ele tomou, hahaha. Mas em relação à minha voz, tenho pensado e tentado transformá-la desde pelo menos o meu disco “Um Labirinto Em Cada Pé”(2011). Acho que até então não havia prestado muita atenção ao meu canto, acreditava que o tal conceito do cantautor me bastasse e de certa maneira me bastou. Por conta disso desenvolvi um canto quase não-canto, muito influenciado pela bossa nova, um canto reto, sem firulas, sem desenhos melódicos muito elaborados, no limite, um canto quase sem nenhuma expressão. Não importava o texto ou a melodia que cantasse, meu canto continuaria o mesmo, impermeável à canção. A partir de um certo ponto e de críticas escritas sobre meu trabalho, isso passou a me incomodar, sobretudo porque eu tenho uma extensão e volume de voz capazes de alcançar outros parâmetros no canto, que talvez por timidez ou excesso de racionalização, estava negligenciando. Acho que mais do que o “Por Elas Sem Elas”(2015) — que apesar de ser um disco onde meu lado intérprete esteja mais em primeiro plano, as canções são todas de minha autoria –, penso que o disco em que eu mais experimentei um outro canto, até pelo fato de pela primeira vez lançar um disco em que não sou o autor das canções, finalmente um disco de intérprete, foi neste tributo ao Nelson Cavaquinho. Não faria sentido encontrar um único canto para todas as canções do disco, eu tive que entender cada canção, o texto de cada uma delas, porque ainda que os assuntos sejam aparentemente os mesmos (as músicas do Nelson giram basicamente em torno de um único tema, a morte), o modo como cada uma trata esse tema é muito diferente entre si. Por isso precisava encontrar vozes diferentes em cada uma das faixas do disco. Diferente do meu canto habitual, mas sobretudo diferente das interpretações do Nelson, pois ainda que fosse impossível para mim imitá-lo, me preocupei em nenhum momento tentar emular seu canto. Tendo a plena consciência, em todo o processo de criação deste disco, de que jamais cantaria tão belamente quanto o próprio Nelson Cavaquinho.

Por que “Rei Vadio”?
Antes de mais nada é o título de uma das canções do Nelson, mas que curiosamente não está no disco. Dei esse nome ao disco porque acho que a imagem de um rei vadio define muito bem pra mim a imagem do próprio Nelson. Ele era um sujeito errante, sem eira nem beira, solto pelas ruas do Rio de Janeiro vagando sem rumo certo, muito pobre, vivendo em condições muito precárias, como podemos comprovar no antológico curta sobre ele dirigido pelo leon hirszman, mas em nenhum momento em que nos deparamos com essa figura, sentimos pena dele, muito pelo contrário, tudo na figura do Nelson lembra nobreza, um outro tipo de nobreza é verdade, daquelas que nada tem a ver com posses ou filiações.

Se não estou enganado, você encontrou resistência de alguns dos músicos que participaram da sua primeira gravação de “Mulher Sem Alma”, que não gostavam da sua orientação para que a cuíca soasse como um cachorro chorando. Qual foi sua abordagem nas versões em “Rei Vadio”?
Na verdade não foi o lance da cuíca, que também gerou controvérsia, mas neste caso foi a bateria desconstruída que o Curumin tocou e que eu apelidei de bateria 7 cordas, depois que o próprio violão de sete cordas já havia sido gravado. O violonista na época (Zé Barbeiro) se ofendeu de verdade como se eu estivesse desrespeitando não o Nelson Cavaquinho, mas ele próprio. Isso aconteceu no meu segundo disco, “Cão”(2006) e foi muito importante pro rumo que minha carreira tomaria dali em diante. Estava muito ligado ao samba como composição, mas apesar de se valer dos músicos desse universo, eu mesmo não pertencia a este mundo, daí que minhas ideias menos ortodoxas não encontravam eco por parte dos músicos que tocavam comigo. Depois desse episódio que talvez tenha sido o mais dramático neste período, parti em busca de outros caminhos pra minha música e que foi resultar no meu disco duplo “No Chão Sem o Chão”(2009), onde pude enfim exercer com total liberdade todas as minhas ideias em relação não apenas ao samba, mas a toda música popular brasileira. Um fato curioso em relação a essa minha gravação original de “Mulher sem Alma” é que eu reutilizei a linda bateria gravada na época como disse, pelo Curumin, apagando os violões do violonista ofendido e acrescentando um lindo e radical arranjo de naipe de sopros escrito pelo Thiago França. Por tudo isso, seja pelo incômodo que ela causou em alguns músicos lá atrás, seja pelo modo inventivo e transgressivo que ela foi aceita pelos músicos que me acompanham agora, tenho muito orgulho com o que acabei fazendo de “Mulher Sem Alma”, tanto em 2006, quanto agora dez anos depois.

Embora o disco não tenha nenhuma faixa com as guitarras siamesas de Rodrigo Campos e Kiko Dinucci, alguns arranjos buscam a mesma aspereza que elas nos oferecem em “Encarnado” e nos dois últimos discos do Passo Torto e, nesse sentido, me parece que o baixo acústico do Marcelo Cabral cumpre um papel parecido ao encontrar uns agudos bem sombrios. Como isso surgiu?
Acho que tem uma diferença primordial entre este tributo ao Nelson e os discos que venho produzindo ao lado deste grupo formado além de mim, pelo Kiko Dinucci, Juçara Marçal, Marcelo Cabral, Rodrigo Campos e Thiago França. Em todos os discos produzidos por esse grupo ao longo dos últimos anos, nos encontramos anteriormente ao início das gravações para levantarmos os arranjos das canções que iríamos registar nestes discos. Todo o trabalho é construído antes de entrar em estúdio. Uma vez em estúdio, gravamos tudo ao vivo, muito rapidamente em dois ou três dias, pois toda a criação já foi construída, descontruída e reconstruída muitas e muitas vezes anteriormente à gravação final. A produção incessante de discos gravados nos últimos anos com esse mesmo núcleo criativo possibilitou a criação de uma linguagem, ao meu ver, muito original e que foi sendo desenvolvida ao longo desses trabalhos todos que você citou e mais ainda como os discos lançados pelo Thiago, Rodrigo, Metá Metá e o disco mais recente da Elza Soares, “A Mulher Do Fim Do Mundo”(2015). No caso de “Rei Vadio” busquei algo diametralmente oposto ao comportamento experimentado por nós, nos últimos anos. Entrei em estúdio completamente sem nenhuma ideia pré-concebida, claro que tinha alguns parâmetros na minha cabeça, mas todos eles foram sendo construídos dentro do estúdio, tamanha a minha confiança que tenho nesses artistas com quem trabalho. Um a um foram chegando ao estúdio, muitas vezes sem saber qual música iriam gravar. Aprendiam a canção no caso de não a conhecer anteriormente, escolhíamos o tom para minha voz e começavamos a gravar as primeiríssimas ideias que fossem surgindo. O próximo músico a entrar em estúdio, não apenas começava uma nova faixa, como ainda interferia nas faixas já gravadas pelos músicos que o antecederam e assim sucessivamente foi sendo construído o disco. Eu queria com isso buscar o máximo de frescor para os arranjos, que fossem o mais primário, no sentido de primeiro, possível. Que as imperfeições, as estranhezas e os “erros” de uma primeira ideia, fossem incorporados aos arranjos. Penso que dessa maneira chegamos perto da imperfeição perfeita de Nelson Cavaquinho.

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Você chegou a falar em um dos nossos podcasts que tinha um sonho de envolver nesse disco a participação de Milton Nascimento, cantando uma música à capela. Por que não rolou?
Porque era um sonho e às vezes os sonhos não acontecem, pelo menos não na hora em que estamos sonhando.

Como chegou à ideia de convidar os três intérpretes que participam do disco?
Primeiramente por minha profunda admiração por cada um deles. Mas vamos falar de cada um. A primeira participação que eu queria no disco, mesmo quando ele era ainda só uma ideia, era a de Dona Inah. Não só pela cantora que ela é e pela voz maravilhosa que ela tem, mas também pelo que ela representa, pelo elo que ela tem com uma época e com um mundo que é o mesmo do Nelson Cavaquinho. Dona Inah carrega na voz a mesma dor que Nelson carregava, brinco que ela é o Nelson de saias. Tenho muita honra de ter a Dona Inah em alguns dos meus discos e neste dedicado ao Nelson ela não poderia ficar de fora. A Ná Ozzeti, além de ser uma das cantoras mais espetaculares e uma das artistas mais inovadoras da canção brasileira, me deu a honra nos últimos anos, de me tornar seu parceiro e seu amigo. Desde então, não há um só trabalho em que eu não pense em uma participaçào da Ná. Neste caso do disco do Nelson ainda tem uma outra característica que eu sabia de antemão, perfeita para a sua interpretação — ela cantou “Caminhando” um dos raros choros de autoria do Nelson gravados por ele e que o Nuno Ramos acabou colocando um letra. Tratando-se de um choro, sua a melodia é muito picotada e veloz, com divisões na letra difíceis de se pronunciar, mas que Ná, com seu canto falado característico tirou de letra, me lembrando um pouco das suas interpretações no seu disco em homenagem a Carmem Miranda. E como esperava, ficou lindo! Por fim, o Criolo. Além de achá-lo um grande cantor, dos maiores da minha geração, me lembrei das apresentações que ele fez ao lado do Marginals, grupo formado pelo Thiago França, Marcelo Cabral e Tony Gordin. Muito diferente do universo do rap em que os beats e grooves são muito marcados e constantes, o Marginals era um trio de improvisação, sem nenhuma marcação prévia, seja rítmica, harmônica ou melódica, tudo inventado ali na hora e eu me lembro do Criolo cantar seu repertório em cima dessa base disforme, criando versões lindíssimas. Quando o convidei já foi pensando nessa formação de trio com o sax barítono, baixo acústico e bateria. Ele cantou lindamente “Luz Negra”, um dos clássicos absolutos do Nelson, com o arranjo todo inventado ali no estúdio no momento da gravação e foi emocionante.

É bem perturbadora a interpretação de Dona Inah para os versos de “Eu e as Flores”. Foi algo procurado nessa versão? Um arranjo mais mórbido que o do próprio Nelson, mais alinhado com o teor da letra?
Continuando um pouco a resposta anterior, eu vejo a Dona Inah como um elo com outra época e outro mundo, o mesmo do Nelson Cavaquinho. Quando escolhi o repertório procurei fugir de canções muito autobiográficas que disessem muito, por exemplo, de um homem velho, ou de um morador do morro, de um integrante da Mangueira, ou de alguém que estivesse enxergando o final da vida, todos temas do Nelson e que achei que soariam falsos na minha voz. “Eu e as flores” está entre minhas canções prediletas na obra do Nelson e ela se encaixa neste conjunto de canções que acabei de citar. Portanto, Dona Inah me serviu pra eu cantar através de sua voz versos como “Quando eu passo perto das flores, quase elas dizem assim: vai que amanhã enfeitaremos o teu fim.” Mais do que mórbida, como você diz, a interpretação arrebatadora da Dona Inah é para mim, mais sofrida, angustiada, de alguém que já viveu muita coisa nessa vida, de alguém que encara as flores de um modo diferente daquele que não pensa ainda em sua finitude. Há de se destacar nessa versão também a conversa entre o cavaquinho e a guitarra, ambos tocados pelo Rodrigo Campos num arranjo belíssimo criado por ele. Eu vejo como um desdobramento do violão do Nelson, como se o cavaquinho e a guitarra assumissem um a mão direita e o outro a mão esquerda. Rudes, estranhas, dissonantes, mas ainda sim líricas, belas, como as do próprio Nelson.

O disco acaba com um coro de “Juízo Final” que, suspeito, foi gravado durante o carnaval de 2015 no bloco da charanga. Confere? Esses versos soam cada vez mais proféticos, dá impressão que as pessoas se reconhecem cada vez mais neles. Você concorda? Acha que tem algo a ver com o nosso momento político?
Sim, isto mesmo! “Juízo Final” é a excessão do procedimento geral do disco, foi o único arranjo criado antes de ser gravado em estúdio. E o Thiago França, autor desse arranjo, já previu em sua forma a execução da música em pleno carnaval pela Espetacular Charanga do França, um de seus inúmeros projetos e agora também um bloco carnavalesco. Eu pessoalmente, previamente combinado com o Thiago, levei um gravador na saída do bloco no carnaval de 2015 e gravei o “Juizo Final”, no meio da multidão na rua cantando em coro. Ouvir a rua cantando desordenadamente feliz ao final do lindíssimo e sofisticado arranjo de sopro escrito pelo Thiago, deu ao disco um final lindo e inesperado, absolutamente coerente com seu título. Quanto a pensar na obra do Nelson sob a ótica da situação política atual, como você sugere, acho que para o bem e para o mal, ela ainda reflete o nosso país. O Nuno escreve no brilhante texto sobre o Nelson que ele fez para a Revista Serrote e que está reproduzido no encarte do disco, que o Nelson “é o nosso contato imediato com aquilo que deu profundamente errado em nós”. A vida e a música do Nelson Cavaquinho nos lembra do que poderia ter sido e o que, apesar dos grandes avanços em anos recentes, ou até por isso mesmo, teimamos em continuar a não ser. A tal da promessa de felicidade pretendida pela bossa nova e nunca cumprida plenamente. Mas o mesmo Nelson nos ensina que apesar de tudo, há de se viver e que seja da maneira mais justa e digna que houver. Se o destino desse país é nunca se formar por inteiro, que ele seja atravessado com dignidade e nobreza. Como Nelson Cavaquinho faria. Como ele o fez.

(Por Ramiro Zwetsch)
Foto: Rodrigo Sommer

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