João Gilberto, 1973

João_Gilberto_(1973)

João Gilberto é tão grande que deve ser o único brasileiro ao qual podemos nos referir em qualquer círculo apenas como “João” e se saberá de quem se trata. “Vamos ouvir aquele disco do João?”, “Ontem assisti ao show do João”, “Que tristeza, João morreu”. É um João alguém – “o” alguém. O pai da bossa nova. O “maior artista com que minha alma teve contato”, descreveu Caetano Veloso na redes sociais. “A voz e o violão mais importantes da música brasileira, fundador do pensamento musical moderno no país e inspirador de uma geração que só iria tocar algum instrumento e se encorajar a cantar com a voz que tinha porque o ouviu sussurrando ‘Chega de Saudade’ em 1959”, decretou Julio Maria, em texto assinado no Estadão. “O maior de todos”, segundo Alexandre Matias em artigo publicado no UOL. Esse é João.

Seu disco de estreia inaugura uma fase da música brasileira. “Chega de Saudade”, de 1959, é a invenção da bossa nova e a influência maior do que viria a se tornar a MPB nas décadas seguintes – é reconhecida a reverência de seus principais nomes às revoluções do baiano: Caetano, Chico Buarque, Gilberto Gil, Gal Costa, Jorge Ben, Tom Zé, Milton Nascimento, Jards Macalé, Novos Baianos, entre muitos outros, delegam ao impacto da audição do álbum um importante divisor de águas para o rumo que tomaram suas respectivas carreiras. A batida do violão, o timbre e as divisões rítmicas do canto e as harmonias eram novidades que tornaram-se obsessão para os músicos das gerações seguintes.

Curiosamente, é com a MPB já estabelecida que João Gilberto vai ainda mais além. Seu disco homônimo de 1973, também tratado como “Álbum Branco”, não carrega o peso da história de “Chega de Saudade”. O tempo, no entanto, tratou de colocar a obra em um novo lugar. Passados 46 anos desde seu lançamento, é possível mergulhar em enigmas ainda indecifráveis. As infinitas regravações de “Desafinado” bem como a repercussão global da bossa nova ajudaram a desvendar boa parte dos segredos de 1959. “João Gilberto”, de 1973, ainda não foi completamente descoberto e não é difícil supor que não reverberou tanto na época justamente por ter sido lançado em um momento em que a música brasileira se esbaldava com alguns de seus discos mais cultuados dos anos 70: “Clube da Esquina” (Milton Nascimento e Lô Borges”, 1972), “Acabou Chorare” (Novos Baianos, 1972), “Transa” (Caetano Veloso, 1972), “Pérola Negra” (Luiz Melodia, 1973), “Secos & Molhados” (Secos & Molhados, 1973), “Índia” (Gal Costa, 1973) e muitos outros. Eram trabalhos influenciados pelo rock, que exalavam rebeldia, com arranjos cheios de elementos, eletricidade. Enquanto isso, o baiano pai de todos penetrava ainda mais fundo no minimalismo da voz e violão, acompanhado somente de uma improvável percussão tocada com vassourinha em um cesto de lixo pelo norte-americano Sony Carr. A única participação é de sua companheira na época, a cantora Miúcha, com quem divide os vocais em “Izaura”.

“Quando ouvi o ‘João Gilberto 73’ pela primeira vez foi um tranco, baixava ali um santo forte. Foi a primeira vez que ouvia ele sem acompanhamentos e o que sobrava ali, no osso, enchendo todo o espaço no fone de ouvido, era só um violão e uma voz contando uma única história, articulados num groove complexo, mínimos detalhes de encaixe precioso entre a voz, a respiração, cada dedo da mão direita em bloco e os deslizes pelas cordas entre cada acorde. Eu já havia ouvido devidamente os minimalistas (Terry Riley e o ‘In C’, Steve Reich do ‘It´s Gonna Rain’), mas aquilo era mais mínimo, mais insistente e muito mais poético, sílaba por sílaba, mais contido e mais líquido”, derrete-se o experiente produtor musical Pena Schmidt. “Eu bebi João. Um som de violão grande, gordo e preciso, a voz ultra-microfônica, entoada com o mínimo de ar, sons de glote, saliva, língua. Ali bem no fundo, um ritmo no limite da invisibilidade, suingue de ombro, uma vassourinha na cesta de vime desdobrando o compasso, ou dedinhos batendo um xequerê suave. Apenas um crédito meio errado: ‘drums: Sonny Carr’ – um mistério que teve biografia revelada no livro ‘Procurando Sonny’; praticamente é o seu único trabalho em disco, ensaiou muito com João no quarto de hotel – por isso a telepatia entre eles. Poucos elementos, mas no disco tem uma acústica de um lugar, a mix do estéreo é cinematográfica, dá pra ver João curvado sobre o bojo do violão, é uma gravação extremamente autoral, radicalmente a serviço da captura da essência mínima. É seco, sem reverberação a não ser a da sala, sem truque nem filtro.”

O repertório do disco desvenda também um novo João. Ele já não está mais tão colado à parceria de Tom e Vinicius nem aos outros compositores fundamentais da bossa nova – e isso é muito natural, lá se iam quase 15 anos desde “Chega de Saudade”. É bonito de ver sua reverência a dois dos seus mais dedicados pupilos na primeira vez que os grava e suas versões para “Avarandado” (Caetano Veloso) e “Eu Vim da Bahia” (Gilberto Gil) penetram no âmago de ambos. É como se João arrancasse das entranhas das canções a beleza mais pura de cada verso e nota. Ele desvenda o João Gilberto que reside no DNA musical da dupla tropicalista. Há ainda uma gravação de “Águas de Março”, composição lançada por Tom Jobim no mesmo ano no disco “Matita Perê” e imortalizada no ano seguinte em “Elis & Tom”. Nos três LPs, é a primeira faixa dos respectivos lados A. No minimalismo de João, sem o piano de Tom e sem a voz sempre brilhantemente expansiva de Elis, o sentido da letra ganha uma outra dimensão e a poesia jobiniana balança mais uma vez plenamente em sua melhor forma: na voz e violão de João Gilberto, nesse vai e vem de hipnose e mansidão tal qual rede à beira-mar.

Tão dedicado a cantar a vida carioca ao longo de toda carreira, o intérprete afirma sua origem no “Álbum Branco”. Além da composição de Gilberto Gil, uma ode ao estado natal de ambos, o repertório traz ainda o hino “Na Baixa do Sapateiro” (de Ary Barroso) e o samba “Falsa Baiana” (de Geraldo Pereira, também registrado por Gal Costa, em 1971, no antológico e ao vivo “Gal a Todo Vapor – Fa-Tal”). A desconstrução da primeira é um desses milagres que só João Gilberto é capaz de fazer: ele abdica da letra, elemento crucial da canção, e destrincha a melodia com os acordes que lhe são tão caros em um transe que se estende por quase cinco minutos de uma repetição que não cansa. O ouvinte distraído talvez nem perceba se tratar das notas tantas vezes cantadas dos versos que dizem: “ah Bahia, Bahia que não me sai do pensamento”. Elas estão disfarçadas na estética revolucionária do violão mais influente da música brasileira.

O mistério maior, no entanto, está nas gravações de “É Preciso Perdoar” (de Alcivando Luz e Carlos Coqueijo) e “Undiú”. É coisa de cinema. A primeira é para rasgar qualquer peito. Se a letra decifra os sentimentos que residem nas profundezas do fim de uma relação amorosa e a beleza do perdão, a interpretação de João Gilberto vale por uma sessão de terapia. Cada verso alcança nossa consciência de modo a sempre atenuar ou potencializar as angústias interiores do ouvinte – mas jamais passam incólume nesse percurso, desde que bate no ouvido e penetra na alma. É de chorar. “Undiú” não tem explicação e soa como a elevação à máxima potência dessa coesão entre cordas vocais e acústicas já tão discutida em academia e botequins. Sem letra, o artista sobrevoa um outro plano além da música para cantar em sua pronúncia calculada apenas a sonoridade das sílabas que dão nome à canção e o “laraiá” mais inspirado e introspectivo da história. O poder meditativo da audição desta gravação no repeat é testado e comprovado. Vai na fé. Sua origem, revelou recentemente o jornalista Marcelo Pinheiro em sua página Quintessência – Música Atemporal Brasileira, está em uma parceria de João com Jorge Amado, na canção “Lamento de Vicente”, lançada em 1963 na trilha sonora do filme “Seara Vermelha” (do cineasta italiano Alberto D’Aversa).

É uma ousadia, obviamente, sustentar que o disco de 1973 seja o mais importante de João Gilberto. Não é o caso. O que se defende aqui é que este álbum, à luz do estrondo de “Chega de Saudade”, teve sua relevância ofuscada e talvez seja o mais belo da carreira do músico. E há quem, além de Pena Schmidt, concorde com essa ideia. “É meu disco predileto de todos os tempos. Ainda que a trilogia inaugural da bossa nova seja muito mais importante historicamente, o álbum de 1973 é o disco mais ‘bonito’ do João. É mais relaxado, mais limpo”, diz Marcus Preto, jornalista e diretor artístico de Gal Costa. “Penso que esses três primeiros discos sejam os mais impactantes pra quem estava vivo e atento quando eles surgiram, ou seja: quem foi impactado pela novidade da batida e da voz de João não abre mão daquele momento e daqueles discos. Mas nós, que já ouvimos aqueles discos no mesmo bolo do disco de 1973, não temos a referência desse primeiro impacto. Então, o que nos vale é a sensação pura da audição. E, nisso, o de 1973 é imbatível.”

“Acho que este é um daqueles trabalhos artísticos que guardam um mistério, ou que deixam uma sensação de mistério: a simplicidade dele é desconcertante. E se imaginarmos que João é uma espécie de síntese da música brasileira, nesse álbum a síntese aparece em toda sua crueza e aí está o mistério: como algo tão cru, simples e sintético pode soar tão sofisticado? Me parece que esses dois extremos se encontram: o simples é o complexo e depois de darem a volta completa, não se sabe mais o que é cada uma dessas coisas”, acrescenta o compositor Rodrigo Campos. “Como sabemos, João é daqueles músicos compulsivos, que tocam o dia todo, na sala, no quarto, no banheiro. Então sua criação nasce desse processo. Dito isso, esse é o álbum que melhor evidencia esse processo, o que mais se assemelha a um tocar em casa. Por isso sua importância, pois percebe-se o DNA da música de João Gilberto muito mais do que em outros discos.”

Essa atmosfera criada tem uma importante contribuição na engenharia de som e mixagem. A profissional responsável é creditada apenas como W. Carlos. Trata-se de Wendy Carlos, importante compositora norte-americana que é pioneira tanto na música como nos costumes. Nascida Walter Carlos, ela foi vanguarda no experimentalismo com eletrônica e fez cirurgia de mudança de sexo em 1972. Seu trabalho no tratamento do som no disco de João Gilberto é crucial para a experiência que temos na audição. “É muito sensível. O uso moderado do efeito reverb (salvo em ‘Valsa’) e o uso de um baldinho de lixo no lugar da bateria aumentam a proximidade e a sensação de estar ouvindo João na sala de sua casa. São pequenos detalhes que mostram que ela realmente entendeu o artista”, observa Campos. “Ela estava em fase de mudança de sexo, então, na indecisão entre colocar Walter ou Wendy, assinou W. Carlos (talvez ainda nem tivesse decidido pelo nome feminino que iria assumir). Se você pensar, essa pauta é muito atual. Em um disco de 1973. E a Wendy trabalhou genialmente. Fez a ‘mixagem’ do disco aproximando ou afastando os músicos do microfone, algo impensável pra um disco profissional hoje em dia. Na mixagem propriamente dita há muitas sutilezas, como na faixa que fecha o disco, ‘Izaura’. Se você ouvir de fone, sente João em uma orelha, Miúcha na outra e o violão no meio da cabeça. Parece que você está na sala, junto com eles e Wendy Carlos”, acrescenta Preto. “Eu gosto de ‘Chega de Saudade’. É o disco que apresenta João, que tem uma fértil discografia, e fez a ponte para um Brasil jovem e moderno. Mas precisou de Wendy Carlos para empurrar os microfones finalmente para dentro dele, para ouvirmos finalmente seu pensamento musical. É um disco telepático”, completa Schmidt.

O “Álbum Branco” não tem orquestrações, não tem Claus Ogerman, não tem os arranjos de Tom, não tem letras de Vinicius, não tem Stan Getz, não tem regravações de Caymmi. Não tem pato, barquinho, Ipanema ou Corcovado. O instinto criativo sintetizado nessa unidade entre voz e violão está mais transparente do que nunca. A percussão é quase invisível – lindamente invisível. O repertório quase não visita canções consagradas e quando o faz, em “Baixa do Sapateiro”, arranca-lhe os versos para flutuar em um delírio instrumental. “Águas de Março” hoje é um clássico, claro, mas à época era recém-lançada. Foi nas profundezas do mar de um samba nada óbvio e nas canções pós-tropicalistas de dois dos seus discípulos de uma geração seguinte que João Gilberto encontrou um conjunto de melodias ideal para sua estética desfilar ainda mais absoluta. A perfeição do mínimo tão perseguida por ele em toda sua carreira está aqui, soberana, em plena potência. É João em estado bruto.

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