Leoa macumbeira

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A leoa devorou o lobo. Algo aconteceu e ela se elevou. Alessandra Leão é uma voz para se ouvir em 2019. Seu “Macumbas e Catimbós” está entre os discos brasileiros mais inspirados do ano e sua participação como protagonista em “Goma Laca: Cantos Populares do Brasil de Elsie Houston” é de um brilho que hipnotiza no palco e no álbum. A imagem que estampa a capa de “Macumbas” já diz tudo: há força, natureza, espiritualidade, protesto e beleza na integridade entre a mulher e o tambor. É um rugido que se impõe. Ouça.

É bonito observar seu percurso. “Macumbas e Catimbós” é um disco todo concebido a partir da estética que comanda os rituais de terreiro. A compositora pernambucana canta e toca seu ilu na companhia de outros dois tambores, tocados por Abuhl Jr. e Maurício Badé. Os temas originais se amalgamam com cantos tradicionais e tecem um repertório de louvação aos orixás de raríssima inspiração. As participações de Lia de Itamaracá, Mateus Aleluia, Sapopemba e Luiz Quiguiriçá (pai de santo da artista) evocam a ancestralidade e conectam com o presente. Há ainda um coro que ela batizou de “festivo” e reúne as vozes de Isaar, Karina Buhr, Lenna Bahule, Lívia Mattos e Manu Maltez. Todos os sons são tirados da garganta e do toque nos tambores.

Em “Goma-Laca”, Alessandra e seu ilu também estão no centro dos arranjos. Ela é a voz principal entre outras que se reúnem ao projeto: Juçara Marçal, Lívia Mattos, Marcelo Pretto, Pastoras do Rosário da Penha e Siba. Já o tambor é o farol que guia os elementos que belamente se somam em uma teia instrumental com o contrabaixo de Marcos Paiva, o cello de Filipe Massumi, a flauta de Junior Kaboclo, o vibrafone de Beto Montag, entre outros. O repertório visita as pesquisas da cantora e musicóloga Elsie Houston para o livro “Chants Populaires Du Brésil”, lançado em 1930 na França, com uma compilação de temas recolhidos pelo Brasil, entre lundus, modinhas, cocos, emboladas, acalantos, cantigas indígenas e do candomblé. O resultado é de chorar.

Antes disso, Alessandra Leão experimentou outras instrumentações. “Dois Cordões” desvenda uma musicalidade já muito madura no encontro de sua poética e canto com as cordas das guitarras de Caçapa e Rafa Barreto – um groove bem recifense, rural e urbano, sem precedentes, com identidade. A trilogia é um mergulho no precipício: a voz grita como quem rasga o peito e as distorções e ruídos nos apresenta um som mais pesado e uma fúria punk quase estranhos aos trabalhos anteriores da artista. Completam sua discografia “Brinquedo de Tambor” (2006) e Folia de Santo” (2009), além da trilha sonora do espetáculo teatral “Guereiras”, de Luciana Lyra. As camadas que se desnudam aqui e ali preparam o ouvinte para o encontro com essa essência que surge agora.

A Radiola Urbana conversou com ela em meio a uma viagem da artista a Montevidéu, na semana passada. Entre bocejos e goles em uma taça de vinho, ela respondeu as perguntas enviadas por e-mail com generosos áudios via whats-app. Suas palavras confirmam: há muita consciência no discurso, na intenção artística e na potência de sua música. Leia a entrevista, vá ao show que ela faz no sábado 24 de agosto, no Auditório Ibirapuera. Recomendamos ainda os livros que acompanham tanto “Macumbas” como “Goma-Laca” para se aprofundar na compreensão de ambos trabalhos. Filha de Yemanjá e Ogum, ogã em terreiro de umbanda, compositora e cantora, Alessandra tem muito a dizer e sua mensagem é uma inspiração para este Brasil de hoje.

Por que “Macumbas e Catimbós”?
“Macumbas e Catimbós” é uma escolha deliberada mesmo, de usar esse nome de frente e sem disfarce, sem maquiagem, sem achar outra palavra pra isso. É isso. É macumba, é catimbó e está tudo bem com isso. Tanto “macumba” como “catimbó” são palavras que foram sendo usadas de forma muito pejorativa ao longo do tempo. O catimbó é uma religião do nordeste do Brasil, mas especificamente de uma parte que vai do Alagoas até o Rio Grande do Norte. Mas muitos filhos de santo, tanto do catimbó como das macumbas, começaram ao longo do tempo a se apresentar e se identificar como espíritas. A minha leitura sobre isso é que, historicamente, o kardecismo ou espiritismo também eram praticados em rituais fechados. A família da minha vó era praticante do kardecismo, fazia reuniões mediúnicas em casa e também não assumia que eram espírita porque não era bem visto na época. Mas, historicamente, as macumbas e os catimbós sempre tiveram outros lugares de serem mal vistos porque são religiões de negros, índios ou ameríndios, e aí tem outras camadas de preconceito pra lidar e desconstruir. A leitura que eu faço hoje sobre o fato de filhos de santo se apresentarem como espíritas – o que, obviamente, não está de todo errado porque as religiões se comunicam e se entrelaçam – é porque o espiritismo é visto de uma forma mais aceita e mais branda. E acho que um dos motivos dele ser visto assim é porque é uma religião de origem europeia e branca, praticada por pessoas de várias classes sociais, mas muitas pessoas de classe média também. Acho que isso interfere. Mas isso é um achismo, não é fruto de uma pesquisa. Então, voltando à pergunta, é por isso: para eu assumir, ajudar a quem quer pensar sobre isso e colaborar nesse debate. A gente pode ser macumbeiro e catimbozeiro e a gente não precisa se disfarçar pra ser. Ainda estamos em um estado laico. Isso é importante que se diga e é importante que se diga “ainda” porque, em tempos de tantos retrocessos, isso também está em jogo e também está em cheque. Isso também corre risco de mudar e da gente retroceder. Então, essa opção de esse ser o nome do disco e do show é justamente pra gente colocar luz sobre esse assunto e dizer: “podemos ser macumbeiros, podemos ser catimbozeiros, o estado ainda é laico e devemos lutar por ele”. E não para que eu seja macumbeira, mas que cada um seja o que quer ser. O estado laico é justamente para que cada um possa exercer a sua fé da forma que lhe convier e lhe for interessante. E exercer sua fé não pode, em momento algum, oprimir a fé do outro –porque está na lei: “o direito de um vai até onde começa o direito do outro”, inclusive para as questões religiosas.

Qual foi o percurso para mergulhar definitivamente no projeto? Imagino que haja uma preparação especial por se tratar de música espiritual…
São 40 anos de percurso pra fazer esse disco. Sim, me exigiu uma preparação, me exigiu uma presença com mais atenção, cuidado e respeito pra lidar com essa música – apesar de ser uma música que me forma estética, artística e culturalmente desde sempre, desde que eu comecei a me aproximar das artes. É daí que vem minha música, não só do terreiro e da religião, mas do terreiro como prática, o terreiro da rua. Pra mim, eles se comunicam e estão em lugares muito parecidos. Mas fazer um disco com esse nome, com esse foco e mote tão específicos, me exigiu sim um outro preparo. Eu sou da umbanda há cerca de quatro anos, sou ogã, curimbeira, toco dentro do ritual, tenho uma função como médium – de trabalho, de cuidado, de respeito com o que eu faço dentro do ritual, com o que eu faço com esse repertório e com a religião fora do ritual. São outras camadas de cuidado. No processo desse disco e desse show, eu tenho pedido constantemente, a cada passo, autorização, orientação e permissão. Não o faço levianamente, não o fiz de qualquer jeito. Fiz com muito amparo, cuidado, respeito e, ao mesmo tempo, com muita liberdade porque é um disco que é a partir de um universo religioso, fala de um universo religioso, mas é também um disco de música brasileira feito agora, em 2019, por três artistas que são ligados às religiões há muitos anos, mas que também são músicos profissionais, que têm outro olhar sobre esse repertório e sobre a música – com outras referências também. Não é um disco etnográfico, não é um registro do que acontece dentro do terreiro, é um disco que é feito na encruzilhada entre o que é do terreiro, o que é da rua, o que é do palco e o que é do estudo. Nós nos demos a liberdade de criar nessa encruzilhada sem negar nenhum dos caminhos, sem negar nenhuma das referências que a gente tem.

Foto: Bia Varella

Por que decidiu dividir os tambores com Abuhl Jr. e Maurício Badé?
Sempre foi com eles, sempre era pra ser com eles. São músicos que eu conheço há muito tempo. Conheci o ilu através do Maurício tocando, trabalho com Abuhl há muitos anos, ele toca na minha banda já tem tempo. Os dois têm uma relação profunda e estreitíssima com esse instrumento e com a religião, com essa estética e esse universo. São músicos que eu admiro imensamente, queria trabalhar com eles há muito tempo e esse disco, especificamente, era pra ter sido feito com eles.

Qual é o significado de ter participações de artistas tão experientes como Lia de Itamaracá, Mateus Aleluia, Sapopemba e Luiz Quiguiriçá?
A minha decisão foi de ter como convidados do disco apenas pessoas mais velhas. Eu não convidei nenhum dos meus contemporâneos como solista, pra dividir a voz. Esse disco também é sobre isso, é uma oferta a essas entidades, os guias, essas forças que protegem não a mim apenas, mas às nossas terras há muito tempo. É também uma homenagem e um agradecimento a quem veio antes de mim, antes de nós, e que nos permitem estar aqui hoje. É uma homenagem a esse tempo, aos que vieram antes. Eles vieram antes e me permitem estar aqui hoje. Me permitem exercer a minha fé e minha música como eu exerço hoje. A gente ainda lida muito mal com o tempo e é pouco respeitoso com quem veio antes. Eu tenho muito cuidado, atenção, respeito e gratidão com relação a isso.

Qual foi a ideia de formar um “coro festivo”?
O disco inicialmente não teria um coro. Durante o processo do disco, eu achei que precisaria somar outras vozes. E aí sim achei que cabia nossos contemporâneos. Essa presença de cada um nesse coro renova esse lugar dessa reverência a quem veio antes. Esse coro responde a quem veio antes, reverbera a voz de quem veio antes da gente.

Seus trabalhos anteriores (a trilogia “Pedra de Sal”, “Aço” e “Língua”) aponta para uma estética bem diferente, com muitas guitarras à frente dos arranjos e um elemento roqueiro que unifica os três discos. Em “Macumbas e Catimbós”, é tudo baseado em percussão e voz. Como se sente nesse percurso? Foi um processo que aconteceu naturalmente? Há uma explicação racional que ajude a compreender o porquê da catarse da trilogia anteceder essa elevação deste novo trabalho?
Gosto muito dessa pergunta. Bem, a trilogia é uma ruptura e não é. Tem uma ruptura em relação ao que eu vinha fazendo antes no “Brinquedo de Tambor” (de 2006), no “Folia de Santo” (que durante muito tempo eu não considerei um disco de carreira, é um projeto específico) e no “Dois Cordões” (de 2009). Pensando no “Brinquedo de Tambor” e no “Dois Cordões”, tem uma certa continuidade na formação instrumental e na referência musical. A trilogia tem uma ruptura: tem uma bateria modificada que entra, tem mais peso, mais ruído, o jeito de cantar e compor mudou. A trilogia é muito mais ruidosa, barulhenta, incômoda. No “Macumbas e Catimbós”, a vontade desde o início era partir do terreiro, que é o que há de mais antigo e presente pra mim – é a forma que eu sempre toquei, percussão e voz, eu componho e dou aula assim. Me dei conta, quando eu estava gravando disco e muitas pessoas comentavam: “nossa, que radical, um disco só de percussão e voz”. Eu pensava: “que engraçado, é o que eu mais faço”. E percebi o óbvio, que eu nunca tinha gravado um disco só de percussão e voz, o que também me exige um outro pensamento para arranjos e concepção do disco. Eu acho que esse percurso é natural, não sei se tem uma explicação racional, o porquê dessa catarse anteceder essa elevação. Bonita essa pergunta. Não sei, não tenho uma explicação racional. Se eu buscasse muito, talvez eu encontrasse uma explicação energética e espiritual pra isso. A trilogia fala desse mergulho, né? É um mergulho íntimo, é muito sobre mim, de um período de transição e mudança. O “Macumbas e Catimbós” é sobre mim, obviamente, sobre a trajetória que eu chego até aqui, mas ele é muito para além de mim – não é sobre mim, diretamente. É um disco sobre algo muito maior, muito mais amplo do que eu sou – e não me diminuindo, eu sou parte disso. Isso é um pensamento das macumbas que eu acho muito bonito: ninguém está acima de nada, nada está acima de nada. A gente é tudo parte integrante: bicho, gente, planta, pedra, água – é tudo parte integrante com a mesma importância pra que tudo caminhe mais equilibradamente.

Em uma mesa do Pulso (evento de residência artística promovido pela Red Bull Station) do ano passado sobre protagonismo feminino na música, você falou sobre a história por trás da música “Devora o Lobo”, do disco “Pedra de Sal”, de 2014. Como música e espiritualidade te ajudaram a lidar com os efeitos daquela experiência?
Naquela mesa do Pulso, no evento da Red Bull, foi a única vez que eu expliquei publicamente a música “Devoro Lobo” e a relação dela com o abuso sexual que eu sofri na infância. Eu acho que falar sobre isso faz com que o assunto não seja colocado embaixo do tapete como foi há muitos anos e ainda é um assunto delicado, sobretudo se pensarmos que a maioria dos casos de pedofilia acontecem dentro de casa, como foi o meu. Não foi com um parente, mas foi com alguém muito próximo, que tinha total confiança da minha família e frequentava minha casa. E não foi uma vez só, foram várias durante um longo período. Eu entrei em um processo terapêutico uns anos atrás pra lidar com isso de uma forma mais objetiva, mais firme. Já vinha em um processo meu, mas entrei na análise com bastante foco nesse assunto. Acho que falar sobre isso é libertador: ver que você não está sozinha, reafirmar esse lugar de que a culpa não é da vítima mesmo – isso não é um jargão, é um fato, sobretudo se a vítima é uma criança e o abusador é um homem adulto. E eu não costumo explicar muito as músicas que faço. O poeta Rimbaud tinha uma frase que eu me uso muito dela, que quando alguém perguntava o que algum poema queria dizer, ele respondia: “o poema é o que é”. E como as minhas músicas normalmente tem algo muito biográfico, muito pessoal, muito íntimo, já carrega isso, é o jeito que eu sei compor, me sinto muito exposta quando está muito explicado, quando o discurso é muito direto. Então quando eu componho, dentro da minha forma de escrever, da minha poética, eu acabo tentando deixar que seja sobre mim, mas não só – reverbere nas pessoas de outras maneiras. Então eu evito um tanto contar história da música ou explicar o que aquilo queria dizer. Então, nesse evento da Red Bull, eu expliquei pela primeira vez a relação da música “Devoro o Lobo” com a história do abuso. Na verdade, pra mim, essa música ficou muito incômoda uma época. Quando eu gravei, foi duro. Gravei em um take só a voz e falei: “tá bom, chega, não dá mais”. Me mobilizou de uma forma muito intensa, claro. E tem sido fortalecedor e importante achar outro jeito de cantá-la e olhar pra esse assunto – de uma forma que não seja sempre o abrir de uma ferida, mas que seja um olhar para a cicatriz. Muda meu jeito de cantar, a minha intenção. É menos sofrido, é mais… É o que é . É uma cicatriz. Faz parte da minha história. Não há como apagar ela. E a espiritualidade ajuda a perceber isso e a entender que tem coisas que acontecem. Não é um conformismo que elas tem que acontecer, mas é… Ok, aconteceu, o que você vai fazer com isso agora? Tem esse amparo, esses cuidados, não estar só, então pode se levantar e a gente se levanta mais forte. Não precisa disso pra ser mais forte. Mas quando cai, você aprende a levantar. E a espiritualidade me ensina isso, me ensina a levantar e a seguir em frente.

Na mesma ocasião (e também no seu texto que acompanha o disco), você comentou sobre o fato de ter se tornado ogã no seu terreiro, função essa que tradicionalmente não é permitida às mulheres. O machismo é algo que deve ser questionado também nos ambientes religiosos de matriz africana?
Eu sou ogã na umbanda. O processo de iniciação é bem diferente do que é no candomblé. No candomblé existe mesmo um ritual de iniciação. Na umbanda, isso se dá de outro jeito: um guia da casa convida que você vá ao tambor e lhe dá essa função e as responsabilidades que vem com essa função. Esse lugar da mulher no tambor, no tambor de pele sobretudo, ele não é muito permitido e existem várias explicações pra isso. Eu entendo dentro da tradição e da história, compreendo dentro da explicação espiritual e energética. Mas eu acho que as religiões, de uma forma geral, assim como tudo na vida, também são frutos de quem somos e como somos como sociedade em um recorte de tempo. E a sociedade muda, o entendimento muda e as religiões mudam também. Então eu acho que esse também é um lugar pra ser repensado. E eu não estou me colocando acima das tradições ao dizer que tem de se repensar. Eu estou propondo que a gente possa repensar, pois as religiões têm esse recorte temporal, social e cultural mesmo. Eu tenho muita honra de tocar na minha casa. Eu lembro de uma conversa com um dos ogãs da casa. Os dois principais ogãs da casa são meninos supernovos. Um está com 19 ou 20 anos e o outro com 15. Quando eu comecei, eles eram bem novinhos ainda. E já são ogãs desde pequenos, são responsáveis com essa função. Comentei que eu tocava há muitos anos mas nunca tinha tocado em um ritual, em uma gira. Um deles me perguntou por quê. Eu falei: “porque mulher normalmente não pode tocar na gira”. E ele me falou assim: “mas não tem mão do mesmo jeito?”. Acho que é uma maneira de se perguntar e questionar. São tempos questionadores e precisa ser pra gente melhorar e avançar um pouquinho.

O lançamento de “Macumbas e Catimbós” acontece muito próximo ao de “Goma-Laca: Cantos Populares do Brasil de Elsie Houston”. É especial ver os dois projetos virem à tona praticamente juntos? Como eles se comunicam entre si?
Essa confluência do “Macumbas” e do “Goma-Laca” ao mesmo tempo foi bem do acaso. Eu já estava organizando as coisas do “Macumbas” quando recebi o convite do “Goma-Laca”. Os processos criativos se deram também em paralelo. A ideia inicial de cronograma era que o “Macumbas” saísse no início do ano pra não juntar os dois lançamentos ao mesmo tempo e ter um pouquinho de respiro entre um e outro. Mas acabou que foi assim, é o que é, acabei lançando os dois no mesmo fim de semana inclusive – o “Macumbas” em Porto Alegre e o “Goma-Laca” em São Paulo. E tem, no final das contas, pontos em comum. Os dois têm um olhar sobre a música brasileira, sobre a música como ela é ou era feita há muito tempo, mas também sobre a música que a gente quer fazer a partir de agora, olhando pra quem veio antes, como se fazia antes e o que a gente quer fazer a partir de agora. Jogando luz também sobre nomes e reflexões importantes sobre porque somos assim, sobre as camadas de apagamento. Elsie Houston não ser conhecida no Brasil, não ter seu livro lançado até hoje no Brasil, é uma vergonha à memória nacional – assim como a gente lidar com casos de intolerância religiosa, com os apagamentos históricos das comunidades negras e indígenas, das questões de gênero. Isso tudo revela quem e como somos como sociedade. Esses discos se encontram nessas inquietações e reflexões, nesse olhar sobre e para o Brasil de hoje – como isso tudo se junta e se transforma nesses tempos que a gente está.

Sua voz e o seu ilu estão no centro de ambos projetos (não só na musicalidade, mas também na linguagem visual: na capa de “Macumbas e Catimbós” e na posição que ocupou no palco do show de lançamento de “Goma-Laca”, que aconteceu no Sesc Pinheiros no sábado 13/7). Como se desenvolveu sua relação com esse instrumento e como vê esse protagonismo tão evidente que ele assumiu nesses dois trabalhos?
O ilu é uma entidade dentro do ritual sagrado, das macumbas, reverenciado como tal. Todas as entidades que chegam no terreiro reverenciam o tambor. Também é o meu instrumento de trabalho da vida inteira. É o meu principal instrumento de estudo e prática. O “Macumbas e Catimbós” também é um agradecimento e oferecimento a este instrumento, que nos sustenta artística, profissional, material e espiritualmente. No Goma-Laca, o convite veio justamente pra que a gente começasse a pensar esse repertório a partir da minha voz e do meu tambor. Os primeiros encontros se deram assim: eu, com meu tambor, Biancamaria Binazzi e Ronaldo Evangelista (idealizadores do projeto) – a gente pegando as músicas do livro de Elsie e achando as primeiras ideias de clave, de ritmo, de divisão, de forma, de tom. Aí depois chegou Marcos Paiva no contrabaixo e, em outro momento, os outros músicos que estão nesse projeto. A minha posição no Goma-Laca como intérprete e percussionista se dá por isso, porque foi pensado realmente que esse fosse o ponto central de partida pra criação dos arranjos e do disco.

Há muitas participações, todas muito valiosas. Mas é muito especial no disco e no show a colaboração com as Pastoras do Rosário. Como foi trabalhar com elas e o que você guardou dessa experiência?
Esse disco foi somando os encontros – o “Macumbas” também. O “Goma-Laca”, engraçado pensar isso agora, também seria um disco de trio inicialmente. A gente acabou somando outras vozes e outros instrumentos nos dois trabalhos. A participação das Pastoras do Rosário é de um presente para além da minha capacidade de agradecer. É de um alegria imensa esse encontro com elas. Acho e sinto que é uma alegria mútua. A gente se celebra, se abraça, se beija, se agradece e se aperta a cada encontro. É um grupo de oito mulheres que não são profissionais da música, mas que há alguns anos, junto com Renato Gama, começaram a abrir a página da história da Igreja do Rosário da Penha, na zona leste de São Paulo, e montaram esse coral que canta uma vez por mês uma missa afro. E não tenho superlativos suficientes pra dizer o quanto gosto delas e o quanto é uma honra tê-las junto, cantar com elas.

“Meu Barco é Veleiro” é um tema com o qual você guarda uma memória em Recife. Qual é a sua história com ele e como ela se relaciona com as discussões recentes em torno da reforma da previdência?
“Meu Barco é Veleiro” é um coco tradicionalmente, tem várias versões dele. Existem várias gravações com melodias e estruturas poéticas diferentes. A que a gente tomou como base pro “Goma-Laca” é uma versão gravada pelos Carregadores de Piano, na missão de pesquisas folclóricas de 1938, organizada pelo Mário de Andrade, que percorreu parte do norte e do nordeste do Brasil. Essa missão é uma das primeiras gravações de música tradicional do Brasil – gravações de campo. É um material riquíssimo e seu acervo, inclusive, está no Centro Cultural São Paulo. Merece muito ser conhecido. E uma das coisas que essa missão gravou foi os Carregadores de Piano. A função e trabalho deles era essa mesmo, carregar piano. As ruas eram de paralelepípedo e o piano é muito sensível. O instrumento chegava no porto e até ser levado à casa das pessoas, desafinava muito. Então, juntava-se um grupo de oito ou dez homens que colocavam o piano sobre a cabeça, dividindo o peso, e iam andando e levando o piano. Quando a missão passou por Recife, já não existia mais essa atividade profissional. Juntaram oito homens que trabalhavam antigamente com isso para eles cantarem o repertório, com músicas de trabalho. A história que contam é que eles não conseguiam cantar. Não saía direito, não dava certo. Então entenderam que faltava o piano pra eles cantarem juntos. Foram ao Teatro Santa Isabel, pegaram o piano emprestado e ficaram andando no entorno do teatro. Aí cantaram e ficou lindo. Eu sou muito fã dessa gravação, ela foi meu despertador no celular até pouco tempo atrás, é uma música que eu escuto muito pra ficar feliz. É uma imagem forte desse piano sobre a cabeça. Ao mesmo tempo ela me reforça a importância que é cantar e fazer junto. Às vezes a gente precisa carregar um piano pra se fazer junto. Nesses tempos que a gente está agora, de tanto retrocesso social e cultural, penso nessas funções que já nem existem mais e se transformam, nos trabalhos que não foram valorizados, subalternizados e mal-remunerados, que sempre tiveram muito próximos da escravidão – e ainda são agora em 2019, com tanto trabalho escravo ainda – e com esse risco eminente de um retrocesso profundo da previdência, desses direitos sociais já adquiridos (e não adquiridos como favor, mas com muita resistência, luta e sangue para que essa seguridade social existisse como ela é hoje)… Eu tenho cantado essa música pensando nesse momento e nessa representação toda, sobre a força dessa imagem e desse cantar coletivo e o que muda quando a gente faz, canta, dança e faz arte coletivamente – mas também quando a gente briga coletivamente: quando a gente debate, questiona, peita e se manifesta. Às vezes a gente precisa botar um piano na cabeça pra que a gente consiga fazer algo junto. Eu tenho me questionado muito: cadê esse nosso piano pra que a gente possa se mobilizar como sociedade para que a gente não tenha esse retrocesso tão concretizado? É cada um dia um terror pra lidar.

Vai lá:

Alessandra Leão – Macumbas e Catimbós

Quando: sábado, 24/08, às 21h

Onde: Auditório Ibirapuera – Av. Pedro Álvares Cabral, sem número

Quanto: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia)

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