Mandamentos black

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Poucas músicas traduzem o sentimento de orgulho negro brasileiro dos anos 70 e a essência do movimento Black Rio quanto “Mandamentos Black”, de Gerson King Combo. Tem a força e a mensagem de “Say It Loud, I’m Black and I’m Proud” (“Diga em alto volume, sou negro e tenho orgulho disso”), que James Brown grava em 1968 e torna-se um hino dançante da resistência da população negra estadunidense no período. Combo venerava Brown e seus dois discos lançados nos anos 70 reverberam a influência muito claramente.  “Mandamentos Black” é a primeira faixa do lado A de “Gerson King Combo”, que o artista carioca lança em 1977.

“Dançar como dança um black! / Amar como ama um black! / Andar como anda um black! / Usar sempre o cumprimento black! / Falar como fala um black! / Eu te amo, brother!”

Gerson se despediu deste plano na terça-feira, 22/09, por conta de uma infecção generalizada decorrente de diabetes. Ele foi um pioneiro e personagem fundamental na cena de soul funk no Brasil que explode na década de 70 e lança toda uma geração de artistas em que se destacam também Tim Maia, Hyldon, Cassiano, Tony Tornado, Dom Salvador & a Abolição, União Black e Banda Black Rio.

Antes da carreira solo,  o cantor e compositor integrou bandas como Fórmula 7 e Banda Veneno. Também acompanhou Wilson Simonal como backing vocal. Em 1969, lança seu primeiro disco “Gerson Combo e a Turma do Soul” – raríssimo em vinil. Sua identidade musical definitiva, no entanto, surge quando lança os álbuns de 1977 e 1978. O movimento Black Rio estava no auge e Gerson ganha destaque com uma estética que fazia referência explícita ao som de James Brown e letras que exaltavam o orgulho negro. Na contracapa do primeiro disco, há a reprodução de um telegrama em que Brown parabeniza Gerson por seu trabalho no Brasil. Em 1973, quando o norte-americano desembarcou no aeroporto de Congonhas para sua primeira turnê no Brasil, ele foi recepcionado por uma comitiva que incluía uma bateria de escola de samba, Wilson Simonal e o saudoso Gerson.

O Black Rio acolhia o jovem negro, historicamente reprimido, em bailes que potencializaram a febre do soul e do funk no Brasil e tornou-se um ambiente em que o orgulho e a conscientização política se disseminaram através da festa, da música e dança. A ditadura, obviamente, perseguiu a movimentação da juventude negra do período. Bailes foram invadidos pela polícia e alguns artistas entraram na mira da repressão.

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Em 1976, Gerson chegou a ser detido no Rio de Janeiro e interrogado por três horas. O jornalista Ibrahim Sued, em sua coluna para o jornal O Globo em outubro de 1977, apontou Gerson e Tony Tornado como pessoas perigosas, em uma inversão absurda da narrativa. Diz o texto:

“Posso informar que um grupo da área musical brasileira está tentando lançar o movimento black power no Brasil. O líder é o cantor Gerson King Combo e o vice-líder Tony Tornado. A tônica do movimento é lançar o racismo no país, como existe nos States. Eles chamam uns aos outros de “brother”, e o cumprimento é com o punho fechado para o alto. Nos shows que promoveram no Rio e em São Paulo conseguiram a presença de 10 mil pessoas. Os brancos são evitados, mal tratados e até insultados. As autoridades estão atentas ao movimento, pois pode se tratar de problemas de segurança nacional. E mais: no Brasil não existe racismo. Existem as pessoas que alcançam posições mais elevada e outras menos. Nos espetáculos os negros aproveitam a oportunidade para agitação, jogando negros contra brancos e fazendo uma preleção para o domínio da raça no Brasil, a exemplo do que acontece nos States. Too bad, e bola preta.”

Gerson foi, sim, um líder. Suas músicas comandaram as pistas de dança nos anos 70, são inspirações para o hip hop brasileiro e até hoje estão entre as preferidas dos DJs do mundo inteiro. A Radiola Urbana reverencia o mestre com uma playlist que reúne 10 pedradas para as pistas de dança (com foco no repertório dos discos de 1977 e 1978) e trechos de uma entrevista que ele concedeu em 2007 para uma reportagem publicada na revista Bizz. Na conversa, ele se lembra da influência de James Brown, os contatos que teve com ídolo norte-americano e outras memórias relacionadas ao movimento Black Rio.

Ouça! Leia! E salve, Gerson King Combo!

– O primeiro encontro com James Brown:
“Em 1969, eu era da banda do Wilson Simonal e durante uma turnê, em Porto Rico, assisti um show com os mestres da música negra norte-americana: Four Tops, Diana Ross & Supremes e James Brown. Eu nem o conhecia bem ainda. Mas quando ele apareceu pra cantar, pensei: ‘esse é o cara’. Fiquei tão empolgado que subi no palco e comecei a dançar perto da banda. Eu só queria um segundo pra aparecer. Demos dois passinhos juntos e ele falou pra eu descer do palco. Desci, fui embora, encontrei os músicos na saída e deixei meu endereço com o (saxofonista) St. Clair Pinckney.”

– O segundo encontro:
“Em 1971, fui pra Nova York com o Simonal e a banda Som 3. Ia ter um show do James Brown lá e acabei descobrindo o hotel em que ele estava. Chegando lá, o empresário não queria deixar eu subir na suíte dele. Daí apareceu o St. Clair, que me levou pra falar com o homem. Ele era baixinho, feio pra cacete, tinha uma ‘narigona’ maior do que a minha. Eu dei a maior força para ele vir para o Brasil porque ele era o ídolo do movimento negro que estava rolando aqui.”

– James Brown no Brasil:
“A negrada encheu o Canecão (para assistir ao show de James Brown, em 1973). Eu estava com a minha esposa e lembro que me deu uma dor de barriga de nervoso porque eu queria que ele me visse, me reconhecesse e me levasse pro palco. Quando gritei, o St. Clair fez um sinal pra mim e eu quase me mijei de tanto êxtase. Fiquei louco em cima de uma mesa do Canecão. No camarim estava um assédio muito grande, não consegui chegar. Eu já estava começando a gravar meu disco, que seria completamente James Brown.”

– A influência de Brown no movimento Black Rio:
“O Black Rio só existiu porque havia James Brown. Foi totalmente calcado em James Brown. Ele mexeu com o orgulho negro, acordou aquela coisa que estava dormindo aqui nos morros.”

– Black Rio e o orgulho negro:
“Antes do movimento Black Rio, o que havia era aquelas musiquinhas da Jovem Guarda. O negro reprimido não tinha dinheiro pra ir nos bailinhos de rock. Quando ele começou a ver o movimento Black Rio, em que ele aparecia como cidadão, começou a vestir roupas diferentes, sapato vermelho… Eu vim com essa mania de vestir casaco de couro e mostrar o cabelão. Não tinha negrão com cabelo grande. Aquilo mexeu com o orgulho negro, o black power. Acordou aquela coisa que estava dormindo aqui nos morros. A ditadura, se oprimia os jornalistas, o que dirá do negrão que morava no morro. O negrão foi se soltando. Antes do movimento black, o negrão tinha medo de beijar uma preta na rua. A galera passava de carro e hostilizava.”

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