Mapa da mina

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O reggae é um fenômeno no Brasil. Festas atraem um público cativo e os chamados sound system proliferam cada vez mais no país. Trata-se basicamente, como a tradução literal para o português sugere, de sistemas de som desenvolvidos para amplificar a música jamaicana. Porém, essa aparelhagem tem características específicas não só no que se refere à reprodução do som como na sua apresentação visual. No que diz respeito à equalização, o grave tem de bater forte no peito dos frequentadores dos bailes. Na seleção musical, os DJs (ou seletores, como é mais comum no vocabulário importado da Jamaica) normalmente usam de certos efeitos típicos associados à essa cultura. São recorrentes, por exemplo, o uso do eco (que confere uma sensação de entorpecimento na mente do ouvinte) e a técnica do “rewind” – que consiste basicamente em executar uma pequena parte da introdução de uma certa música que é querida pelo público e retornar ao começo dela girando o disco de vinil ao contrário; esse recurso fatalmente gera euforia entre os fãs, que reagem aos gritos de “Pow! Pow! Pow!” toda vez que o DJ saca essa carta da manga. No aspecto visual, os sounds systems também provocam impacto aos olhos pois são imensas paredes com uma grande quantidade de caixas de som empilhadas (aproximadamente dez, em geral).

O desenvolvimento dessa cultura no Brasil se desenrola a partir de 2001, quando surgem os dois primeiros sistemas de som nesses moldes: Dubversão em São Paulo e Digital Dubs no Rio de Janeiro. De lá pra cá, a coisa cresceu absurdamente e o recém-lançado livro “Mapa Sound System do Brasil” registra 120 dessas aparelhagens. Os organizadores da publicação são a seletora, pesquisadora e produtora cultural Dani Pimenta e o ilustrador e designer Natan Nascimento. Em 160 páginas, podemos apreciar a aparência de cada um dos sound systems registrados sob o traço digital de Natan e entender um pouco melhor dessa história de quase duas décadas a partir de textos da própria Dani e de outros personagens protagonistas dessa saga. Os autores frisam e a gente assina embaixo: esse registro se debruça sobre essa movimentação recente (muito concentrada nas regiões periféricas de São Paulo) e não cobre, por exemplo, a impressionante cena de reggae que se desenvolve no Maranhão (com características próprias) desde os anos 70. É um recorte específico e a Radiola Urbana recomenda muito! Confira nossa entrevista com a dupla!

Radiola Urbana – Como surgiu a ideia de mapear os sound systems no Brasil?
Dani Pimenta – Surgiu em 2015 e veio de uma curiosidade minha sobre quais eram os sound systems do país (que já apresentavam um crescimento bastante relevante ali naquele período, o que viria a ser um boom logo na sequência), como eles trabalhavam, quem eram as pessoas que formavam esses coletivos, e, principalmente, a curiosidade em saber a história das equipes contadas por elas próprias.

RU – Por que resolveu ilustrar os sistemas de som?
Natan Nascimento – A inspiração foi múltipla. A principio eu estava ilustrando o sistema de som do meu coletivo, Favela Sound System, para um flyer de uma festa nossa. A ideia era fazer uma ilustração mais “quadrada” e digital. Aconteceu que eu terminei de fazer mais rápido do que eu esperava e então resolvi desenhar mais sounds de amigos meus nesse mesmo estilo. Então eu fui desenhando sem muita ideia do que fazer com aquilo. Quando percebi, já tinha uns 40 sounds desenhados e decidi que seria legal ampliar a pesquisa para todo o Brasil.

RU – De onde vem o seu interesse por essa cultura?
DP – Na adolescência, eu era frequentadora das festas de rap da cidade (como a histórica Class) e, na realidade, naquela época meu contato com o reggae era bem superficial, das coisas que chegavam mais “prontas” aos meus ouvidos na pista. Não buscava nem me aprofundava muito. Colei algumas vezes na festa Stamina Dancehall, que rolava ali na Jive, duas esquinas pra cima da minha casa, e gostava do som. Porém, em meados de 2006, eu conheci o Java, festa comandada pelo Dubversão e que rola até os dias de hoje, e aí aconteceu uma mudança de olhar sobre essa cultura, sobre o sound system e a música jamaicana além do que estava fácil de ouvir e acessar. Em seguida conheci o blog You&Me on a Jamboree, entendi que tinha um universo absurdamente amplo a ser explorado e aí o mergulho foi definitivo. Em 2008, eu criei um blog chamado Groovin Mood (até então, eu escrevia esporadicamente para veículos de rap como o Coletivo MTV e o Bocada Forte) e nele eu falo basicamente de reggae e sound system até hoje. Poucos anos depois eu comecei a produzir festas, a tocar e colecionar reggae. Foi uma paixão arrebatadora.
NN – Meu primeiro contato com os sound systems foi através do graffiti e da pixação. Um amigo meu de Jundiaí que fazia graffiti, o Sono Tws, tinha começado um coletivo de reggae em São Paulo e eu não tinha muito conhecimento sobre aquilo. Foi, se não me engano, em 2009 no CCPC Consolação a primeira vez que colei na festa dele. Chegando lá, descobri o Jurassic Sound e uma cultura “nova” que me cativou. No dia seguinte, já comecei a baixar musica, criar playlist no i-tunes e pesquisar mais sobre o reggae. Em 2010, comprei meus primeiros discos e em 2011 comecei a promover e tocar em festas em Jundiaí, viabilizando o nascimento do Favela Sound System em 2013.

RU – Como aconteceu a conexão entre vocês?
DP – Eu fiz uma entrevista com o Favela Sound System para o Mapa Sound System Brasil, que até então ainda era apenas uma coluna no meu blog. Na realidade, o Favela inaugurou a coluna, eles foram os meus primeiros entrevistados. Alguns anos depois, o Natan começou a desenhar os sistemas de som do país com base no mapeamento do meu blog. Uma parte desse trabalho dele, um pôster-cápsula com uma pequena amostra de ilustrações de sistemas do país, foi parar na exposição “Jamaica, Jamaica”, que rolou em 2018 no Sesc 24 de Maio. Nesse ínterim, ele me procurou propondo que uníssemos forças pra criar algo com esse material todo que eu e ele juntamos individualmente e então nasceu a ideia do livro. Importante dizer que ele não é um livro sobre a história do sound system no Brasil e, sim, um mapeamento puro e simples baseado em ilustrações, que conta com alguns depoimentos soltos como curiosidades e complementos narrativos.
NN – Entre 2013 e 2014 rolou uma parada muito bacana no facebook: as pessoas que tinham discos, tocavam em festas ou tinham sound começaram a se adicionar e criar conexões. Nessa época conheci a Dani e seu trabalho tanto com o Groovin Mood quanto com a Festa Mulheril. Quando ela nos entrevistou, estreitamos um pouco mais nossa relação. Em 2017, quando eu já tinha ilustrado mais de 100 sounds do Brasil, convidei ela para juntarmos os projetos e lançarmos um livro juntos. Ela topou de primeira. Hoje somos grandes amigos e parceiros nesse trabalho.

RU – Qual é a importância dos sound systems para a música jamaicana? Até que ponto a evolução dos tantos gêneros musicais da ilha incorporam elementos surgidos nessas festas?
DP – Os sound systems foram a rádio da época na Jamaica, permitiram que as pessoas, mesmo sem recursos financeiros, pudessem desfrutar de entretenimento e divertimento. Também foi a partir dos sounds que criou-se a trajetória da música jamaicana como conhecemos e apreciamos hoje nos quatro cantos do planeta. Os donos de sound system, que até então reverberavam ritmos norte-americanos, passaram a investir nos talentos da ilha e difundir essas vozes nos sistemas. O resto é história. Os elementos presentes desde o início dessa “nova” linha do tempo da música jamaicana, que dá o seu start com o ska e é contemporânea à independência local – o que é importante ressaltar – foram se transformando e se adaptando com o passar dos anos. Mas penso que não ficaram no passado e continuam compondo todo o cenário musical que permanece pulsante na ilha em uma constante conexão e influência em todo o mundo – e não só no reggae.

RU – Acredita que a proliferação dos sistemas de som podem fomentar também uma cena de produção musical de reggae no Brasil como aconteceu na Jamaica?
DP – Torcemos para que sim. Já é bastante interessante a movimentação de produção musical dentro do reggae e do sound system mas obviamente ainda está distante do que aconteceu na música da Jamaica – algo que aparenta ser absolutamente infinito. Penso que também temos uma mentalidade que precisa ser desconstruída em relação ao cenário sound system X bandas de reggae, afinal os maiores clássicos do reggae foram produzidos com bandas, não é? Talvez se essa conexão passasse a ser mais próxima, com a quebra desse paradigma, teríamos ainda mais ganhos em quantidade e qualidade. Mas, de qualquer modo, o sound system também produz cada vez mais e não é mais uma raridade ver as equipes tocando seus próprios sons e agitando a pista ou a rua.

RU – Na sua opinião, o que explica essa maior concentração de aparelhagens no estado de SP?
DP – Quero aqui fazer um adendo: no livro, a gente fala especificamente dos sound systems que se proliferaram a partir dos anos 2000, nesse modelo pós-Dubversão. No entanto, as aparelhagens de amplificação de reggae no Maranhão (que têm formatos e outras especificidades diferentes do “nosso” sound system) têm sua origem bastante anterior a esse caminho feito anos depois a partir de SP. Segundo informações do Museu do Reggae, são mais de 200 radiolas espalhadas pelo país – então é radiola pra caramba! Adendo feito, voltemos ao tema do livro. Penso que essa importante movimentação do Dubversão no início dos 2000 inspirou muita gente a fazer o mesmo e essa acaba sendo uma das razões dessa concentração. A forte movida de SP, as possibilidades de uma metrópole desse porte (apesar das dificuldades que também não são poucas), os espaços, a quantidade de pessoas… Enfim, são muitos fatores que, somados, acredito que explicam esse fenômeno.
NN – A gente percebeu com a pesquisa que o Dubversão (SP) e o Digital Dubs (RJ) surgiram quase simultaneamente. Porém, o Dubversão foi a primeira equipe a construir suas próprias caixas de som e aprofundar o reggae dentro desse universo dos sistemas de som. Então, a oportunidade de vivenciar uma festa sound system veio antes para mais pessoas do estado de SP do que nos outros estados.

RU – Por que as regiões periféricas atraem tantos sound systems?
DP – É algo intrínseco à origem do sound system lá no seu berço. Foi da periferia que ele veio, é para o povo periférico que ele deu voz (no caso dos artistas) e espaço de convivência e diversão (no caso do público). Somos um país de terceiro mundo, com muitos elementos que se conectam à história da Jamaica como povo e sociedade.
NN – Eu acredito que existam muito da representatividade nisso. A maioria dos moradores das favelas são pessoas pretas, logo o reggae é melhor aceito nos bairros periféricos. Aí entra a parada da acessibilidade: muitas vezes leva 2 horas para uma pessoa das zonas leste ou sul chegar em um evento no centro de SP – isso acaba sendo um incentivo pra galera da periferia construir seus próprio sistema de som e reproduzir a cultura que ama em seus próprios bairros. Além disso, o reggae muitas vezes retrata o cotidiano desse povo da periferia e dá voz pra essa galera, o que acaba gerando uma responsabilidade social muito grande nas pessoas que trabalham diretamente com essa cultura. As equipes muitas vezes promovem eventos gratuitos, em espaços públicos e/ou em bairros periféricos.

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