Musa atormentada

Dos arquivos da Radiola Urbana (2005), texto sobre “Uh Huh Her” — sexto disco de estúdio da infalível PJ Harvey. Hoje, o trabalho representa o ápice da aspereza da roqueira britânica pois os três trabalhos seguintes — “White Chalk” (2007), “A Woman A Man Walked By” (2009) e “Let England Shake” (2011) — enveradam por uma veia mais melódica e afastam o som da cantora das delícias de berros e distorções que marcam a primeira fase de sua carreira (1992 – 2004).

Ela bem que poderia ser uma pint de Guiness Extra Stout. Assim como a cerveja irlandesa, preta, amarga e encorpada, é ao longo de cada gole que suas maiores virtudes vão sendo percebidas. Pouco a pouco. A temperatura é mais alta do que as outras: próxima do morno. É desse jeito que ela desce pela garganta para fazer com que o corpo todo sinta o que talvez o cérebro esteja tentando processar há tempos: tarde demais para voltar atrás. Polly Jean Harvey veio ao mundo para confundir. E as sensações que ela causa podem vir tanto de facetas quase desconhecidas – como escultura ou pintura em pedras, objetos que distribui aos amigos – quanto do alto de seu sexto disco, “Uh Huh Her”.

Nascida a nove de outubro de 1969 em Yeovil, Somerset, na Inglaterra, PJ Harvey pensou em cursar a faculdade de artes antes de seguir carreira musical. Nos momentos intimistas, costuma recolher elementos marinhos pelas areias do litoral inglês, onde tem uma casa, para desenhar motivos divertidos, quase infantis. Hoje, tem até algumas peças em exposição espalhadas por museus britânicos. “Me traz de volta à base” – ela disse, no final dos anos 90, em entrevista a uma rádio inglesa. “Me estimula e me inspira a compor.”

Usar imagens – às vezes não exatamente belas – para ilustrar sua música é uma característica ainda mais marcante no álbum de 2004. Partes de frases escritas a mão em papéis rasgados misturam-se a polaróides e auto-retratos por todo o encarte como pedaços de memória, momentos capturados. “No neurosis, no psychosis, no psycoanalysis”, rabisca, por cima de fotografias em que aparece descabelada e sem maquiagem – uma antítese escancarada do bem-acabado “Stories from the City, Stories from the Sea”, lançado quatro anos antes, como resultado de uma temporada em Nova York. “Esse disco é bastante feioso, perturbador, soturno, bluesy”, declarou a moça, na época do lançamento de “Uh Huh Her”.

Um engasgo, uma afirmação, uma risada? Nem o título parece ter escapado da mira fulminante do humor sarcástico da cantora inglesa. O mais interessante, no entanto, é notar o capricho da compositora em manter a aura de mistério ao seu redor, seja no relacionamento com a imprensa – ela raramente dá entrevistas, preferindo aparecer em fotos polêmicas, com o peito à mostra ou em poses provocantes e cara de quem não está nem aí – ou na maneira como transforma sexo, amor e religião em composições únicas, regadas a baixo, guitarra e bateria, além de piano, violino, violoncelo, sax, vibrafone e o que mais surgir debaixo de sua vasta cabeleira.

Se a lista de recursos para obter os mais variados sons é extensa e muito bem-aproveitada – quem viu aquela mulher tímida e sexy chacoalhar as maracas no Tim Festival de 2004 sabe do que se trata – seria preciso abrir um capítulo à parte para o seu instrumento principal. Do uivo aos sussurros, parece não haver limites para a voz de PJ Harvey. É nesse quesito que algumas de suas principais influências ficam ainda mais claras. Só para citar duas: a diva do pré-punk Patti Smith e o compositor dark Nick Cave – com quem a cantora teve um affair e cujo resultado musical é “Murder Ballads” (1996), disco temático de Cave com os Bad Seeds sobre histórias de assassinatos. A interpretação dramática da dupla em “Henry Lee” faz valer o álbum.

A dramaticidade de “Uh Huh Her” vem acompanhada de certa carga de tensão. A começar por “Life and Death of Mr. Badmouth”, composição sugestiva repleta de farpas a alguém cujos lábios têm sabor de veneno. Em “Who the Fuck?” (faixa de uma ira invejável), PJ Harvey xinga e esperneia à procura de paixões eternamente mal-resolvidas. E revela, em seguida, seu talento para alternar momentos de explosão rebelde com baladas cheias de beleza, caso de “You Come Through”. No final das contas, como diz a letra de “Slow Drug”, a musa atormentada crava: o amor é a droga que eu preciso.

Na contramão de “Stories from the City…”, ou mesmo de “To Bring You My Love” – disco de 1995 que foi o maior responsável por confirmar o status da cantora como uma das figuras mais importantes do cenário alternativo nos anos 90 – “Uh Huh Her” não tem vocação para ser um álbum de singles. Ele se aproxima mais de um punhado de canções espinhosas e aparentemente sem conexão entre si, capazes de fazer mal ao estômago – ou a ouvidos desavisados.

Mas chamá-lo de indigesto seria trilhar um caminho óbvio. Pois se até os momentos desafinados de “Cat on the Wall” parecem ter sido colocados nos lugares certos, a crueza de algumas faixas merece ser sorvida com atenção. “The Letter” (single que virou videoclipe) e “It’s You” (com sabor de lado B e um pianinho triste e delicioso) têm a poeira de “Rid of Me” e “4 Track Demos”, dos idos de 1993. Algumas composições remetem a “Is This Desire?” (1998) e até mesmo a “Dry” (1992) – seu primeiro álbum e, dizem, um dos preferidos de Kurt Cobain – mas ainda assim estão longe de serem iguais a algo que PJ Harvey já tenha feito nesses 15 anos de carreira.

No meio da sujeira sobra espaço para uma ou outra pincelada de folk (herança, talvez, do contato com Bob Dylan e Rolling Stones, de quem seus pais, hippies, eram amigos). Vide o pandeiro que ilustra “Pocket Knife”, com letra de uma objetividade desconcertante: “por favor, não me venha com um vestido de noiva / eu sou jovem demais pra casar / quer ver só o meu punhal? / você não pode me fazer ser sua esposa…”

Aos paladares ávidos por uma bebida forte, fica o inútil alerta: difícil é degustar com moderação.

(Por Lígia Nogueira)

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