Na fossa do soul*

De uma maneira natural os versos da música “Walk On By”, composta pela dupla Burt Bacharach e Hal David, já são extremamente dolorosos. Em qualquer voz, revela um coração masculino partido em pedaços imperceptíveis, esparramados pelo caminho em que ela (a garota) anda ao longo de toda a cidade e deixa para trás apenas um olhar de “sinto muito, mas a vida continua”. Contudo, esse coração partido, cantado por Isaac Hayes em sua versão de 1969 é muito mais. Revela um coração quebrado, pisoteado, cortado, triturado, queimado e ainda com as cinzas jogadas no esgoto.

Antes de Curtis Mayfield gravar seu ótimo “Curtis” em 1970, antes de Marvin Gaye dar um novo fôlego a soul music com seu “What’s Going On” em 1971, antes de George Clinton apresentar o seu funk psicodélico junto aos combinados Funkadelic/Parliament, Isaac Hayes libertou sua alma numa obra-prima que apresentava alguns dos melhores momentos da música negra em todos os tempos, expandindo o formato do soul e do funk com arranjos orquestrais, metais poderosos e guitarras pontualmente distorcidas.

“Hot Buttered Soul” foi gravado em 1969, quando o formato mais quadrado, com canções simples que não iam muito além dos quatro minutos de duração, era o mais usado. Não dava para imaginar um disco com apenas quatro músicas, que podiam durar minutos de instrumentações consistentes ou com longos monólogos sobre o amor ferido. Isaac já tinha experiência de estúdio tanto como produtor quanto como músico e, portanto, sabia exatamente o que fazia. Como se não bastasse, contou com uma grande banda de apoio, os Bar-Kays.

No fundo do poço
O álbum começa com a versão de “Walk On By”, um épico de 12 minutos de duração, atravessado por cordas, metais e uma guitarra que parece chorar. Apenas a sua introdução instrumental já é o suficiente para derrubar qualquer homem rejeitado, mas quando Isaac coloca o vozeirão para funcionar é que o mundo despenca de uma vez. É de forma dolorosa e lenta que ele começa a explicar no primeiro verso “If you see me walking down the street” (“se você me vir andando pela rua”) para aumentar o tom e acentuar no segundo “And I start to cry each time we meet” (“e se eu começar a chorar cada vez que nos encontrarmos”), e no final dar a solução: “Walk on by” (“siga andando”). A visão do homem em frangalhos, chorando em plena rua depois de cruzar com seu amor, é potencializada pela inflexão da voz do cantor que depois só pede para que ela o deixe sofrer sozinho.

Entre a primeira e a segunda estrofe é a guitarra, com seus riffs lamentosos, que ganha força. Após a segunda, são os movimentos de cordas e metais que vão num crescendo suave, para diminuir gradualmente junto com o final da música. Muito da sonoridade imposta nesta canção influenciou o trip hop dos anos 90, com seus arranjos cheios de violinos e ritmo lento, tanto que a base de “Glory Times” (do Portishead) e “Hell Is Around The Corner” (do Tricky) foram tiradas de uma música de Isaac, “Ike’s Rap III”, do disco “Black Moses” (1971). A versão dos Racionais MC’s para “Jorge Da Capadócia”, de Jorge Ben, também se apropria desse mesmo groove.

Psicodelia e sacanagem
O tom muda na segunda faixa. Bem mais movimentada e com um groove poderoso, a canção tem cerca de 9 minutos e meio de duração. Toda a parte vocal acontece na primeira metade, para que na segunda, ganhe espaço uma improvisação no piano passeando por cima de uma base consistente, com ritmo reto e agitado. Com um nome que é mais fácil de se escutar do que de se falar (ou escrever), “Hyperbolicsyllabicesquedalymistic” joga toda a psicodelia num funk poderoso, com um vocal meio sacana e um refrão que é impossível de se esquecer quando é cantado por um coro de vozes femininas juntas a de Isaac.

A balada “One Woman” é a música mais convencional do disco. Com “apenas” 5 minutos de duração, ela é a que mais se aproxima a soul music mais tradicional, mas mesmo assim tem arranjos elaborados, com a presença dos metais e dos instrumentos de corda. O refrão é grudento e cantado com entusiasmo com a ajuda de um coro feminino no melhor estilo gospel. Nela o vocalista discorre sobre os caminhos pelos quais uma mulher pode levar um homem a seguir.

Um disco desses não poderia fechar com uma canção menos fabulosa do que “By The Time I Get To Phoenix” e seus mais de 18 minutos. Se na primeira Isaac Hayes apresentava um coração partido de forma única, aqui ele revela como odeia deixar a mulher que ama. Durante os primeiros 8 minutos, a canção é um monólogo do cantor com um som de órgão passando por baixo de sua voz. Vez ou outra ele ameaça começar a cantar, mas só ameaça, deixando o suspense para o ouvinte. Quando começa mesmo, quase sussurra os primeiros versos “By the time i get to Phoenix” (“Pelo tempo que fico em Phoenix”) para manter sua característica de acentuar o que vem a seguir, ainda no mesmo verso “she’ll be rising” (“ela renascerá”). Durante três estrofes o ritmo delicado, de um soul mais tradicional, é o que manda, mas a coisa muda totalmente de figura quando Isaac começa uma espécie de improviso angustiante com alguns versos. As cordas tomam corpo e o ritmo muda, fica mais poderoso e cresce até tomar completamente a música numa orquestração suntuosa que perdura por daí em diante. É com desespero que ele canta frases como “I hate to leave you baby” (“eu odeio deixá-la, baby”) e as repete de forma cada vez mais e mais encorpadas, ao mesmo tempo em que toda a instrumentação conduz a música para um clímax e um final quase orquestral. Mais uma vez lembra muito tudo que foi usado pelos atuais grupos de trip hop.

Existem boatos de que “Hot Buttered Soul” foi gravado durante horas mortas de estúdio, quando ninguém estava gravando nada. O disco foi lançado pela Stax junto com uma outra penca de álbuns, nenhum tão significativo ou ousado. O próprio Isaac Hayes se tornou uma estrela do gênero e se firmou em álbuns posteriores — como a trilha do filme “Shaft” e “Black Moses”. Um boa ouvida em qualquer uma das 4 faixas desse disco deixa claro que mesmo que ele não tivesse feito mais nada, já era o suficiente para ser lembrado como um dos grandes nomes da cultura negra norte-americana e merecer o fato de fazer a voz do Chef da série “South Park”. Foi justamente o disco das horas mortas o que deu sobrevida ao soul e ao funk.

(Por Alê Duarte)
*texto publicado em 2004

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