Nós temos Miles

Exposição gratuita “Queremos Miles”, em cartaz no Sesc Pinheiros (SP) até janeiro, oferece panorama completo — com fotografias, partituras originais, capas de discos, notas de gravação, instrumentos, roupas, vídeos e, claro, muita música — da obra do trompetista e compositor, líder de algumas das principais reinvenções da história do jazz

O gênio não é necessariamente aquele que cria, que inventa. Seja um gênero, um estilo, uma ideia, poucas vezes o primeiro a fazer é o que melhor consegue fazê-lo. Na música os exemplos são vastos. Bob Dylan absorveu, modernizou e aperfeiçoou as maneiras do folk, e depois os misturou com o rock, para criar a sua obra. David Bowie elevou a teatralidade no palco a níveis até então desconhecidos, sempre absorvendo as influências à sua volta. Claro que existe o fator criativo, e muito, em cada um deles, mas isso é menos importante do que o fator da invenção em si.

Uma exposição em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo, mostra bem essa faceta absorvente de outro gênio. “Queremos Miles” traça a trajetória de um dos mais inquietos músicos do século XX, o trompetista norte-americano Miles Davis (26/05/1926 – 28/09/1991). O músico, ao longo de cerca de 50 anos, sempre se reinventou e ajudou a forçar a barra dentro do jazz, para que o gênero — talvez o estilo de música que mais absorva de outros — se modernizasse a ganhasse adeptos a cada década em que ele viveu.

Essa natureza de absorção do jazz é a própria natureza do músico Miles Davis. O trompetista soube como ninguém observar o que estava para acontecer, se cercar das pessoas certas para que ele pudesse tirar o melhor de cada um e colocar esses ingredientes em sua música. Como todo gênio, Miles nem sempre foi grato por isso. Como todo gênio, Miles é só um ser humano.

A exposição traz objetos – de instrumentos à roupas – que pertenceram ao músico e a alguns de seus mais importantes parceiros. É possível ver, por exemplo, um saxofone tocado por John Coltrane nos anos 1950. Além disso, a mostra está cheia de imagens fotográficas, capas de discos, partituras originais, cartas, notas de gravação e é claro, muita música. Esse som está espalhado desde a época de Davis nos anos 1940 até o final dos anos 1980, quando ele teve sua fase mais “sintética” com o disco “Tutu”. A tudo isso, somam-se vídeos de apresentações de diferentes encarnações de Miles, e também filmes para os quais ele compôs a trilha sonora, como o clássico noir de Louis Malle, “Ascensor para o Cadafalso”.

A disposição geográfica da exposição também ajuda a compreender o universo “milesdaviano”. Dividido em 8 seções temáticas, tudo começa a St. Louis, local de seu nascimento, e passa para sua fase em Nova York, onde o músico desembarcou para estudar na famosa escola de música Juilliard, que logo seria abandonada. O motivo do abandono era bom: Miles estava se misturando com a turma do be-bop, seus ídolos Dizzie Gillespie e Charle Parker, com quem tocaria regularmente.

Depois disso, os passos da mostra seguem para a invenção do Cool Jazz, quando Miles mostrou pela primeira vez seu grande poder para absorver as ideias à sua volta e lançar um produto melhor acabado disso. Sua união com músicos como Gil Evans e Gerry Mullingan resultou no disco “Birth of the Cool” (1957), sua primeira obra-prima, apesar de só ter 2 músicas de sua autoria.

Seu espírito inquieto logo o distanciaria do que ele ajudou a criar. E nos anos 50 Miles se viciou em heroína, se livrou dela e formou seu primeiro supergrupo, que contava com o ainda verde John Coltrane. Além disso, fortaleceu sua parceria com o maestro Gil Evans em uma sequencia de discos fantásticos entre o final dos anos 50 e início dos 60. O resultado da formação desse grupo e seus trabalhos da época seria outra obra-prima que revirou completamente o mundo do jazz, e se tornou o álbum mais vendido do gênero até então. “Kind of Blue” (1959) dava mais liberdade que qualquer outro disco aos músicos, era o jazz modal que entrava em ação, e dessa vez o imã usado por Miles para dar vazão a suas aspirações foi um pianista branco com formação mais clássica, Bill Evans.

Os músicos desse primeiro supergrupo debandaram em suas ótimas carreiras próprias, e Miles se viu obrigado a buscar em uma série de músicos jovens seu segundo dream team Entravam em cena Herbie Hancock, Ron Carter, George Coleman (e mais tarde Wayne Shorter) e um incrível baterista de apenas 17 anos, que seria fundamental na próxima revolução de Davis, Tony Williams. Essa fase é marcada pela abstração cada vez mais radical da música de Miles, até chegar ao ponto em que ela se torna elétrica.

Tony Williams havia lançado seu trio, o Emergency, e seu explosivo disco de estréia saiu um ano antes de “Bitches Brew”, o próximo passo da carreira de Miles. O disco de Williams trazia no órgão Larry Young e na guitarra um inglês que aproximava mais seus timbres do rock n’ roll do que do jazz, John MacLaughlin. Os dois músicos foram chamados para o disco seguinte de Miles. “Bitches Brew” e o desenvolvimento da carreira de Miles nos anos 70 também é uma importante parte da exposição. Nesse período, provavelmente o mais experimental de sua carreira, o trompetista plugou seu trompete num pedal wah-wah (coisa que Don Ellis já havia feito em seus impressionantes discos com orquestra) e explorou o que apareceu em sua frente. Daí surgiram discos geniais como “Tribute do Jack Johnson” (jazz-rock) e “On The Corner” (jazz-funk).

Os corredores finais exposição levam para o Miles Davis dos anos 80, depois de um hiato de 5 anos. Aqui ele já aparece como um popstar, com discos que são típicos da época, e como muitos outros, soam datados com suas batidas exageradamente sintetizadas. O ponto mais curioso aqui são as pinturas do músico e um impagável desfile de moda que ele participou, além de suas espalhafatosas jaquetas que não deixam nada a dever para as de Michael Jackson.

Miles Davis morreu em 28 de setembro de 1991, há 20 anos. O homem — que soube absorver, filtrar e traduzir diversas linguagens de uma maneira própria — foi muitas vezes mais absorvido e transmutado na ilimitada influência de sua obra. É assim e será por muito tempo. Nesse caso, o roubo de qualquer ideia ou crédito sempre será perdoado.

(Por Alê Duarte)

Queremos Miles!
Sesc Pinheiros, São Paulo
Entrada gratuita
Até 22/01
Terça a sexta, das 10h30 às 21h30
Sábado e domingo, das 10h30 às 18h30

No comments

Trackbacks/Pingbacks

  1. Radiola Urbana 39 – Betty Davis | Radiola Urbana - [...] (2007): podcast sobre Betty Davis e seu funk pesadíssimo! Ouça e entenda porque ela enlouqueceu Miles Davis. Locução: Pedro…
  2. Retrospectiva 2011 | Radiola Urbana - [...] – 1991), as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo tiveram a sorte de receber a exposição…

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *