3 em 1

Metá Metá (expressão Yorubá, que pode ser traduzida como “unidade de três”) já tem seu lugar garantido na música brasileira de 2011: o trio — formado por Kiko Dinucci (voz e violão), Juçara Marçal (voz) e Thiago França (sax e flauta) — lançou digitalmente um disco instigante no primeiro semestre e só agora, cinco meses depois, solta um CD que será vendido nos shows. Os três integrantes conversaram com a Radiola Urbana por email e demonstram que não só na música, mas também no discurso, formam mesmo uma unidade rara

1)

O violão é percussivo, a flauta pode soar como se fosse dedilhada e as vozes podem harmonizar como teclados. A primeira coisa que salta aos ouvidos na audição de “Metá Metá” é a instrumentação. Cinco faixas se sustentam simplesmente com sopros e cordas (vocais e do violão) e cada elemento se desafia e interage de modo a não obedecer nenhuma convenção — seja do samba, da canção ou do suposto papel que cada instrumento tem de cumprir num arranjo. Outras quatro acrescentam percussão (Samba Sam) e bateria (Serginho Machado), além de uma única que traz o cavaquinho de Rodrigo Campos. Não há baixo nem teclado e ninguém sente falta. O óbvio não é bem-vindo aqui. Essa opção confere um realce natural às letras e às vozes, com uma linha narrativa em evidência quase como uma sessão de curtas-metragens. Além das músicas de Kiko Dinucci, há composições de Siba, Rodrigo Campos, Douglas Germano, Jonathan Silva, Lincoln Antônio e Maurício Pereira. A química do trio também bate forte no peito: há uma convicção de que essa ideia só funcionaria desse jeito com estes três músicos e as dinâmicas que o encontro estimula. Acrescenta-se aí o estilo de cada um. Kiko busca timbres e texturas e modifica o som com pedaços de plástico enfiados nas hastes do violão. A voz de Juçara varia da doçura para o grito de guerra com uma naturalidade espantosa. Thiago não se contenta com o papel de solista com hora marcada. Tanta criatividade dispensa um maior esmero na produção: embora os arranjos surpreendam pela originalidade, há uma certa crueza no acabamento.

Kiko Dinucci – O que consigo explicar mais racionalmente sobre o resultado da composição é que eu, Thiago e Juçara temos uma química que misteriosamente funciona muito. Tocamos juntos há 5 anos. Isso cria uma certa intimidade, a coisa funciona sozinha, é meio mágico. O que pode facilitar é o fato de termos uma visão estética e artística que se encaixa, que combina. Temos um compromisso com a invenção e essa criação tem de vir acompanhada de prazer e diversão. A arte é o nosso playcenter: rimos e nos divertimos, somos felizes enquanto estamos trabalhando nesse plano.

Thiago França – O lance de dispensar o baixo não foi proposital nem conceitual, simplesmente não havia um baixista que se encaixasse no som. Uma banda não é como um time de futebol, que precisa ter um lateral, um goleiro… Precisa ter gente que entenda o som proposto. Aliás, química não é uma coisa a qual se chega, tem ou não tem. A primeira vez que a gente tocou
junto já rolou um lance, deu pra ver claramente que tinha alguma coisa ali.

Juçara Marçal – O processo de criação aconteceu a partir de experimentações muito descompromissadas, não havia uma intenção anterior ao processo. O mote era achar um jeito de tocar, nessa formação trio, as canções que a gente curtia. Então, a própria formação ajudou nessa valorização das letras. Os arranjos econômicos, utilizando muito de contrapontos e ostinatos, funcionam como um pedal sobre o qual a melodia e a letra das canções podem passear mais livremente.

KD – Essa valorização da letra não é novidade pra mim. Em todos os meus discos eu tentei gravar canções que se destacavam pelas letras. O que aconteceu com o Metá é que seguimos inconscientemente um caminho na contra-mão da produção independente atual. Hoje em dia eu acho o som da galera muito bacana e bem produzido, mas tem muita roupagem e pouco corpo. Sinto falta de composições mais densas, com letras que te pegam. A minha geração é muito deficiente nesse sentido, acho que eles tem de ouvir mais coisas brasileiras lá de trás: Caymmi é uma aula, Luiz Gonzaga, esse pessoal… Está faltando referência, vão no máximo até o Caetano dos 70, tem mais coisa por aí. Talvez essa abstração melódica e literária da nova geração seja a característica e não o defeito, mas não me encaixo nesse contexto. Os arranjos de Metá Metá são complexos, muitos contrapontos, uma visão mais africana de tocar. E tem os vazios também. A voz está sempre na frente escancarando a canção. Essas canções já são boas por si só. Quando a canção é boa, já temos meio caminho andado.

TF – A crueza era inevitável, já que são só três instrumentos. Foi algo que a gente se deparou e assumiu. Depois de gravado, rolou até um certo receio da nossa parte, do disco estar cru demais, chegamos até a nos sentir meio deslocados, entende? No meio de tudo que estava sendo produzido, era quase uma ofensa fazer um disco assim.

Radiola Urbana – E esse lance de gravar com os plásticos nas hastes? De onde veio essa ideia?
KD – Quem me deu essa idéia foi o cantor Marcelo Pretto. Depois me inspirei no piano preparado do John Cage. É uma tentativa de alterar os timbres do violão, não deixar sempre com o mesmo som, acaba limitando. Parece um kalimba. Em “Ciranda Para Janaína” e “Vale do Jucá” (Siba) eu pensei como se fosse uma caixa, um tarol melódico.

RU – Os sopros são tocados de uma maneira não convencional, soando às vezes até percussivo…
TF – O mais comum é o cara do sopro fazer a intro, esperar, fazer um solo no meio e esperar a próxima música. Eu tenho pavor disso. A intenção é tirar o sax (e a flauta) do seu lugar comum e se misturar à base, fazer parte da cozinha. O lance é ajudar a contar a história. Por exemplo, no “Vale do Jucá”, o sax faz a vez da percussão do maracatu, entrando primeiro com o “tambor” depois com o “agogô”. Em “Umbigada”, a flauta e o violão conversam como duas guitarrinhas africanas, contando a harmonia sem precisar de acordes. Em “Samuel”, o sax entra como se fosse um “pedal”, criando uma textura na voz. Mesmo em momentos mais óbvios de solo, a intenção é totalmente estética, muito distante de ficar pensando em escalas. No “Obá Iná”, a ideia é de desenhar musicalmente a figura de Xangô. O improviso da flauta no “Trovoa” é também uma tradução do sentimento do narrador.

2)

A África está em Metá Metá e não é só no nome ou na “visão mais africana de tocar”. O disco transborda devoção ao universo afro-religioso e os orixás são inspiração recorrente. Nestas canções específicas, a voz de Juçara ganha um peso extra — parece mesmo que o santo baixou nela. Muitas das matérias, reportagens e críticas publicadas sobre o trabalho sacaram isso, mas quase sempre com a tendência de reduzir as referências aos afro-sambas (de Baden Powell e Vinícius de Moraes) e ao afrobeat de Fela Kuti. Há, no entanto, muitas outras bifurcações possíveis nessa ponte África-Brasil.

JM – Há bifurcação, entroncamento, contramão — como diz a canção “Vias de Fato”! A tendência não é reduzir as comparações, mas não se restringir a elas. Há Baden sim, há afrobeat sim, assim como há em igual ou maior medida: Itamar Assumpção, Adoniran Barbosa, Jards Macalé, Mulheres Negras, Clara Nunes, Arrigo Barnabé, cantigas de candomblé, umbanda, tambor de mina, Luiz Tatit, Sepultura, Samba de Roda do Recôncavo, Black Sabbath, Pixinguinha, John Coltrane…e não para aí!

TF – Apesar do ritmo se asemelhar em alguns momentos, o que realmente é a marca do afrobeat (pra mim) é o lance de ficar tocando, de azeitar os grooves, deixar rolar. As músicas têm 15, 20 minutos, as estruturas são mais soltas: canta, pára, rola um solo, volta, canta de novo… Isso o Metá não tem tanto, o foco é na canção. O afrobeat não tem canções.

KD – Comparar a minha obra aos afro-sambas talvez seja o caminho mais fácil. É claro que Baden está entre as minhas referências, querendo ou não, qualquer invenção ou ousadia feitas no violão irá trombar com ele em alguma altura. No disco “Metá Metá”, a única canção que lembra o Baden é “Vias de Fato”. As outras, e principalmente as que tem alguma ligação afro-religiosa, são totalmente diferentes. Meu jeito de falar de orixá é urbano, é o orixá em São Paulo, tem uma dureza, diferente do que é feito na Bahia, por exemplo. Quanto às letras de Vinicius, posso afirmar que não tenho relação alguma. Aprendi a fazer letras com Noel Rosa, Wilson Batista, Chico Buarque, Aldir Blanc, Luiz Tatit, Adoniran, Vanzolini. A minha relação com Baden é mais íntima, mas nunca tentei estudar a obra dele. Ele é pra mim mais uma referência, como Napalm Death ou Tião Carreiro e Pardinho.

TF – O violão do Kiko soa parecido com o do Baden pra muita gente, mas o caminho dele é outro. O Kiko combinou elementos do punk com o samba. Ele trabalha a região grave fazendo bordões, como um violão de 7 faria, mas com um fraseado completamente diferente do samba e do choro, próximo a riffs de guitarra. Acho que se você disser pra um violonista mais tradicional que o Kiko parece com o Baden, ele vai ficar meio ofendido. O que eu percebo é que o violão dos dois tem um quê indecifrável. Nisso, eles acabam soando parecidos.

JM – Tenho uma proximidade muito forte com as religiões de herança africana. A maneira de entender a religião, o culto aos ancestrais, a visão animista — tudo isso me encanta. Quando canto uma cantiga pra uma divindade específica, procuro trazer pra voz, pro jeito de cantar um pouco dessa simbologia ligada ao ancestral.

3)

O disco do Metá Metá será vendido a R$ 10 nos shows e o único marcado acontece exatamente no dia da publicação deste texto — quinta-feira, 27/10/2011, na Choperia do Sesc Pompeia (SP). Já o download gratuito está ao seu inteiro dispor desde maio e, segundo consta, assim permanecerá para todo o sempre. Baixe AQUI.

(Por Ramiro Zwetsch)

Metá Metá
Quinta-feira, 27/10, às 21h30
Choperia do Sesc Pompeia
R$ 16

 

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