Pra afugentar o diabo

Do baú (2004): texto sobre “War Ina Babylon”, clássico jamaicano de 1976, lançado por Max Romeo & The Upsetters, com produção de Lee Perry e pérolas do reggae como a faixa-título (que chegou a ser cobiçada por um certo Bob Marley), “Chase The Devil” e “One Step Forward”. Álbum reflete tensão política da ilha no período

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Bob Marley ficou na saudade. Ele escutou “War Ina Babylon” antes de ser gravada e salivou. Pediu a música mas Lee Perry bateu o pé: aquela já tinha dono. “Eu tive que ser forte senão aquela seria mais uma música do repertório de Bob Marley, ainda que fosse de minha autoria. Depois, ele fez algo muito parecido em “Three Little Birds” (a linha de baixo é muito próxima). Era a minha chance e eu a agarrei”, lembra o felizardo co-autor e intérprete da faixa no encarte da caixa “Arkology” – um bom apanhado da obra de Perry em três CDs.

“War Ina Babylon” virou um emblema da música jamaicana, abriu o horizonte de visibilidade do cantor Max Romeo e gerou um álbum homônimo, lançado em 1976, de relevância maiúscula na genealogia do reggae. Até ali um coadjuvante de luxo, Romeo ganhou reconhecimento como intérprete versátil, bom letrista e porta-voz de um potente disco-protesto recheado de clássicos – como “One Step Forward” e “Chase The Devil”.

Seu potencial encontrou todos os elementos de ressonância no mitológico estúdio Black Ark. O proprietário era um dos sujeitos mais excêntricos da história da música pop: Lee Perry – também conhecido como Lee “Scratch” Perry, vulgo The Upsetter, identidade secreta de Jah Lion, pseudônimo de Super Ape, apelidado Pipecock Jakxon. Little Perry para os íntimos. Como preferir. Nascido Rainford Hugh Perry, o produtor, compositor e engenheiro de som cultiva tantas polêmicas em seu currículo quanto trocas de nome artístico ao longo de sua carreira.

Da mesma forma que disputa com Bob Marley o título de inventor do reggae, também reclama pela paternidade do dub – atribuída, por muitos, ao igualmente lendário produtor King Tubby. Na bíblia All Music Guide, ele é apresentado mais ou menos da seguinte forma: “Alguns o chamam de gênio, outros de insano completo. A verdade é que ele é ambas as coisas mas, o mais importante: Lee Perry é uma figura central do reggae – produtor, engenheiro de som e compositor que, assim como King Tubby, ajudou a moldar a sonoridade do dub, e fez do reggae uma fatia bem servida da música pop mundial”.

Cano em Sampa
Uma introdução e tanto: suas indiscutíveis contribuições à música convivem com episódios bizarros, e essa mistura resulta em uma das mais intrigantes biografias musicais. Em 2002, ele deixou de embarcar para São Paulo (onde faria duas apresentações no Sesc Pompéia pelo festival Dub Mamute) sob o pretexto de que o bilhete aéreo estava amaldiçoado. Não foram poucos os decepcionados e alguns pediram o reembolso da grana dos ingressos. Mas quem optou por assistir aos outros shows da programação não se arrependeu. O outro protagonista do festival, Mad Professor fez às vezes da casa à frente dos músicos da banda de seu parceiro Perry e lavou a alma dos presentes. “Sun Is Shining”, “Police And Thieves”, “Burnin’ and Lootin’”, “Chase The Devil” e “War Ina Babylon” foram alguns dos tópicos abordados na aula de dub ao vivo, que o Sesc assistiu em duas noites. Cinco anos depois, Lee Perry se apresentou no Brasil com chapéu de feiticeiro e voz frágil — mas a mágica superou a fraqueza com folga e a emoção transbordou no público, que finalmente via a lenda nos palcos tupiniquins.

Antes de cancelar seu embarque em 2002, em reportagem de Cláudia Assef para a Folha de São Paulo, Perry prometia: “depois de mim, o país vai chamar ‘Scratchzil’”. Na mesma matéria, ele comentava outras bizarrices mais lendárias que protagonizou. Em 1983, ele incendiou seu Black Ark por acreditar que o diabo circulava pelo local. “E não fiz outro (estúdio) porque não quero ajudar a Jamaica. Eles já me roubaram o suficiente. Roubaram minhas fitas e não sabiam apreciar minha música. (….) Nem existia Bob Marley quando eu apareci. Eu escrevi “Jah Live”. Se ele a tivesse escrito realmente, Jah não o teria deixado morrer. Jah vai voltar, vai voltar.”

A treta entre Marley e Perry não se restringe à questão de autoria dessa ou de outras músicas. A parceria fértil não demorou em mexer com os gênios explosivos de ambos. Na virada dos 60 para os 70, eles trabalharam juntos intensamente. Os Wailers encontraram na companhia dos Upsetters – banda de estúdio recrutada por Perry – o aconchego instrumental para as harmonias vocais. Era muito músico talentoso junto. Ao trio de frente (formado por Marley, Peter Tosh e Bunny Wailer) somaram-se os irmãos Barret – Aston “Family Man” (baixo) e Carlton (bateria), uma dupla de zaga afinadíssima –, o guitarrista Alva Lewis e o tecladista Glen Adams (ex-Heptones). Um time completo sob regência de Lee Perry.

Com essa formação, Bob Marley & The Wailers gravaram “Soul Rebels”. Lançado pelo selo Trojan Records, o disco foi o primeiro do grupo a sair no mercado internacional. Musicalmente, a nova formação resultou em um salto na sonoridade dos Wailers. Na biografia de Marley “Queimando Tudo”, o autor Timothy White explica a mudança assim: “Trabalhando com os Wailers, Perry desenvolveu-os a ponto de se tornarem uma unidade com forte propensão ao rock que tipificava o melhor na exploração dos primórdios do reggae. Foi Scratch quem redirecionou o grupo em termos musicais e vocais. Insistiu com Bob para que mudasse seu jeito largadão de cantar e os vocais de Marley de repente se tornaram pujantes, melancólicos, desobstruídos da tola ginástica de trinados que às vezes estragavam os discos de ska e rocksteady de 45 rotações dos Wailers”, escreve. E acrescenta: “E Perry não era obcecado por metais como tantos outros produtores jamaicanos; preferia uma guitarra rítmica empedernida que pudesse se ater a levadas pungentes e girasse em torno da linha de baixo, que ele permitia chegar ao primeiro plano. Carl Barret era um gênio no estilo de batida ‘one drop’ do reggae (…) e tinha um sotaque que parecia o primeiro chacoalhar selvagem dentro do covil das cobras. O tempo era marcado com bastante peso, volátil, insistente como uma criança manhosa.”

Metáforas à parte, enquanto White prefere atribuir a transformação da sonoridade a uma aproximação com o rock, outro escritor encontra maior coerência na comparação com o funk estadunidense. Segundo Davit Katz, autor de “People Funny Boy” (biografia de Lee Perry), “James Brown foi especialmente uma forte influência” naquelas gravações. “Lee Scratch Perry confirma que Marley veio a ele com ‘My Cup’, uma mutação da gravação de James Brown ‘Guess I’ve Got To Cry, Cry, Cry’. Perry sentiu-se incapaz de recusá-la. E assim começou uma nova fase do reggae.”

Não é exagero. “Soul Rebels” é quase uma cartilha para a evolução do reggae dali em diante. A parceria com Perry, no entanto, desandou. Os Wailers efetivaram os irmãos Barret em sua formação, assinaram contrato com a gravadora Island em 1972 e protagonizaram uma nova revolução no reggae com os álbuns “Burnin’” e “Catch a Fire” – ambos lançados em 1973 e produzidos pelo anglo-jamaicano branco Chris Blackwell, proprietário da Island. Perry ficou ressentido. “Foi Bob quem organizou tudo, com o dinheiro de Blackwell. Eles levaram meus músicos. Mas eu não guardo mágoas de Aston e Carlton porque o dinheiro fala mais alto”, disse, em uma entrevista de 1984.

Apesar das feridas não cicatrizadas, Marley e Perry continuaram amigos ao longo dos anos 70. Enquanto os Wailers ganhavam o mundo definitivamente, o produtor continuava com suas experimentações de estúdio e seria reconhecido como um dos maiores responsáveis pela febre do dub no mesmo período. Antes de sucumbir às cinzas, o fecundo Black Ark deu à luz um punhado de álbuns notórios de reggae e dub: “Police And Thieves”, de Junior Murvin (1977), “Party Time”, dos Heptones (1977), e “Super Ape”, The Upsetters (1976) são alguns exemplos. O citado “War Ina Babylon” é outro. Max Romeo foi integrante dos Upsetters em uma formação anterior à parceria com os Wailers. Até ali, tinha um único disco-solo, “Reveletion Time” (de 1975). Considerado “essencial para qualquer coleção de reggae” pelo All Music Guide, “War Ina Babylon” reverbera não só pela química entre Perry e Max Romeo. A sonoridade quente pinga o suor de um discurso inspirado pelo calor do cenário político jamaicano da época.

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BABILÔNIA FERVE
Às vésperas das eleições presidenciais, o clima era de tensão nas ruas e a truculência policial se espalhava. O cenário se projetava na letra de “War Ina Babylon”:

“War ina babylon (Guerra na babilônia)/
Tribal war ina babylon (Guerra tribal na babilônia)/
It sipple out deh (escorre por aí)/
The policeman no like the dreadlocks man (Os policiais não gostam dos dreadlocks)/
The dreadlocks man no like the policeman, no (Os dreadlocks não gostam dos policiais, não)”.

Tais versos vinham embalados pela tal linha de baixo que chapou Bob Marley e pontuados por backing vocals rasgados e liderados por Marcia Griffiths (intérprete do hit “Feel Like Jumping” e uma das três vozes do grupo I-Threes, que acompanhava os Wailers).

“A ideia veio do que estava acontecendo, da nova onda de violência que se arrastava. Decidimos escrever uma música sobre aquela situação e Perry deu a idéia. Ele disse ‘it rough out a street, things sipple out there’. Eu apenas acrescentei ‘War Ina Babylon, a sipple out there’, e começamos a escrever a letra. Foram bons aqueles dias, Lee Perry tirava o melhor de mim”, disse Max Romeo em entrevista de 1994. A música é a última no lado A do vinil – mesma face que oferece ao ouvinte outras duas pedradas do disco: “One Step Forward” e “Chase The Devil”.

A primeira abre o álbum com um recado direto para Michael Manley, primeiro-ministro jamaicano. Os versos “one step Forward, two step backward (um passo para frente, dois para trás)” introduziam a letra – uma sugestão de que o político não estava cumprindo com os compromissos socialistas e tinha o rabo preso com Estados Unidos e Reino Unido. O arranjo acomoda a melodia melancólica e, já na primeira faixa do disco, Romeo dá uma amostra de onde sua voz vai chegar ao longo do álbum. Seu falsete conduz a música ao transe com naturalidade, sem excessos.

O EXORCISTA
A mesma combinação ganha peso e balanço em “Chase The Devil” – talvez o ápice criativo da parceria entre Perry e Romeo. O groove da faixa, com vocal e tudo mais, serviu de inspiração para o Prodigy aproximar o reggae do breakbeat em “Out Of Space” e o refrão tornou-se relativamente conhecido dos devotos da música eletrônica. Jay-Z se apropriou da mesma referência na faixa “Lucifer”, de 2003, e o os fãs de rap também desenvolveram intimidade com “Chase The Devil”. A versão original leva o reggae ao êxtase. A linha de baixo flutua escorregadia como se desviasse dos golpes secos da guitarra rítmica no contratempo. Tudo muito simples e bem encaixado. A base aquece o timbre de Romeo e a alquimia ferve.

Enquanto a letra disserta em versos sinistros sobre uma desavença com o demônio, o caldeirão instrumental borbulha. “Lee Perry escreveu a letra. Ele tinha alguma controvérsia com o diabo, não sei se ele tinha alguma obsessão em fazer algo sobre o diabo. Ele apareceu com a música sobre o enforcamento do demônio, que falava em cortar a garganta dele e jogá-lo no fogo. Daí eu disse: ‘Você não precisa fazer isso. Vamos apenas caçá-lo e enviá-lo à outra dimensão para ele encontrar uma nova raça’”, diz o intérprete no encarte de “Arkology”. Com a intervenção de Romeo, a primeira parte da letra ficou assim:

“Lucifer son of the mourning, I’m gonna chase you out of earth! (Lúcifer, filho do sofrimento, eu vou expulsá-lo da Terra)/
I’m gonna put on a iron shirt, and chase satan out of earth (Vou vestir uma camisa de ferro e expulsar o satã da terra)/
I’m gonna put on a iron shirt, and chase the devil out of earth (Vou vestir uma camisa de ferro e expulsar o satã da terra)/
I’m gonna send him to outa space, to find another race (Vou mandá-lo para outra dimensão, para encontrar uma nova raça)/
I’m gonna send him to outa space, to find another race (Vou mandá-lo para outra dimensão, para encontrar uma nova raça)”

Só essa tríade de clássicos já eleva “War Ina Babylon” à condição de clássico do reggae – e essa constatação só ganha argumento com as outras faixas do álbum. Max Romeo atribui parte do êxito à magia que o Black Ark exalava sob os feitiços de Lee Perry. “Ninguém sabe qual era a técnica que Perry usava porque ele sobrepunha camadas para rechear os quatro canais. Era mavailhoso. A vibração do Black Ark era única”, descreveu o intérprete para o “The Rough Guide To Reggae”. Infelizmente para o reggae, a parceria entre Perry e Romeo parou ali. As desavenças entre eles se tornaram insuportáveis e cada um seguiu seu rumo na música.

(Por Ramiro Zwetsch)

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