Ato revolucionário

Sampa The Great, rapper da Zâmbia de 29 anos desembarca no Brasil em pleno movimento de afirmação da existência de um corpo africano e feminino que chacoalha as estruturas ao seu redor. Ela tem um disco gravado, “The Return” (de 2019), e prepara-se para lançar o segundo (“As Above, So Below”). Conversamos com ela por email. Leia!

Artista viveu de 2013 a 2020 na Austrália, onde experimentou realizações e opressões

A escritora e pesquisadora Juliana Borges cravou, em 2015, uma frase que se tornou um lema, se perpetua e ganha cada vez mais sentido: “uma mulher negra feliz é um ato revolucionário”. As palavras estampam o título de um artigo publicado na Carta Capital, que reflete sobre as opressões inerentes à existência dos corpos femininos de pele escura. Entre tantas negações, a que se refere ao amor é uma das mais profundas. “Ser mulher negra é um processo de reencontro cotidiano, de reconstrução da identidade que nos foi negada”, ela escreve. O argumento reverbera outra máxima intelectual constantemente lembrada pelo feminismo negro – essa de autoria da ativista estadunidense Angela Davis: “quando uma mulher negra se movimenta, toda estrutura da sociedade se movimenta com ela”.

Sampa Tembo está em movimento e protagoniza uma revolução. Nascida na cidade de Ndola, na Zâmbia, em uma região próxima à fronteira com a República Democrática do Congo, ela ostenta 29 anos recém-completados no dia 9 de agosto e uma carreira artística que chacoalha estruturas para além do seu entorno íntimo. Seu primeiro álbum, “The Return” (2019), a alçou ao sucesso meteórico e ela já acumula feitos históricos. É a primeira artista zambiana a se apresentar com uma banda inteiramente formada por músicos do seu país em festivais como Glastonbury e Coachella. “É uma experiência ao mesmo tempo humilhante e uma bela oportunidade de fazer uma turnê ao redor do mundo. Nunca pretendemos ser os primeiros, mas nos esforçamos para não ser os únicos”, diz a artista, em entrevista por email à Radiola Urbana. Para além disso: Sampa provoca reflexão e inspira transformação com rap de extrema potência. Ela se apresenta no Brasil em São Paulo (17/08, Audio), Rio de Janeiro (18/08, Circo Voador), Porto Alegre (20/08, Urb Stage) e Curitiba (21/08, Opera de Arame). Só temos a ganhar ao vê-la em ação.

Entre 2013 e 2020, a artista viveu na Austrália, entre Sidney e Melbourne. Estudou engenharia de áudio e lançou suas primeiras músicas em 2015. “No começo, meus pais ficaram hesitantes. A música não é vista como uma carreira estável de onde eu venho – e com razão. Demorou um pouco para eles aceitarem que essa é a minha paixão”, lembra. Sampa foi privada, inclusive, da informação de que um dos seus tios foi integrante da banda W.I.T.C.H., referência do gênero batizado como zamrock – que, basicamente, mistura elementos dos ritmos tradicionais da Zâmbia com rock psicodélico e se tornou febre no país nos anos 70. “Meu pai só me disse sobre isso há um ou dois anos. Eu, definitivamente, poderia ter usado essa informação no início da carreira. Foi uma jornada bem solitária no começo, sem que a minha família se envolvesse no aspecto dos negócios da música. É bom saber que não só a carreira artística estava destinada a mim, mas também que a música corre no meu sangue! O zamrock era visto como diferente e ousado e não realmente ‘música africana’ – e acontece algo muito parecido com a música que faço agora. O impacto dessa cena musical abriu uma conversa sobre como a música africana é ampla e sem limites e como a África é o berço e a inspiração de toda a música.”

A boa repercussão de “The Return” na Austrália trouxe prêmios e opressões. Sampa tornou-se a primeira artista de rap não branca a vencer o Australia Music Prize, em 2019. Ao receber o prêmio, discursou sobre a falta de reconhecimento da arte negra no país – mas sua fala aconteceu durante os intervalos comerciais e foi, portanto, invisibilizada durante a transmissão do evento. A revolução não foi televisionada. No ano seguinte, ela participou mais uma vez da premiação com uma apresentação arrebatadora de uma de suas melhores músicas, “Final Form”. Filmada em Botswana, país onde foi criada, a performance começa com uma declamação: “In a country that pretends not to see black, to not see its origins and its past (Em um país que finge não ver o negro, não ver suas origens e seu passado) / Not only did black visionaries make you see, but made it knwn who created human history (Não apenas os visionários negros fizeram você ver, mas também divulgaram quem criou a história / And when we wins awards, they toss uso on the ad breaks, of course (E quando ganhamos prêmios, eles nos jogam nos intervalos comercias, obviamente / But is that history lost? Can’t remember what you forgot (Mas essa história está perdida? Não consigo lembrar o que você esqueceu)”. Na sequência, músicos e bailarinos (todos zambianos) se somam à Sampa em uma coreografia afrofuturista: punhos cerrados e corpos livres, a dança, a paisagem e o figurino convocam à ancestralidade e a linguagem do hip hop aponta para a utopia de um mundo onde pretos existem sem repressão. A revolução foi televisionada.

Os desconfortos em ser mulher preta em um país da Oceania tornaram-se insuportáveis. A representatividade tem um peso. Sampa passou a ser tratada como “artista australiana” e o pioneirismo por ser a primeira artista negra a vencer na categoria de rap (como assim?) em uma premiação a empurraram para um retorno às origens. A pandemia acelerou o processo e, desde 2020, a artista está de volta à Zâmbia. “Isso aconteceria eventualmente de qualquer maneira porque meu objetivo era voltar para casa e usar os meus recursos e plataformas para ajudar a construir uma indústria no meu país. A pandemia aconteceu e acelerou o movimento. Em casa há menos pressão para representar todos – é mais sobre me representar”, diz. Ela agora se prepara para lançar seu segundo LP, “As Above, So Below”, em setembro. O disco foi todo gravado na Zâmbia, com produção do artista local Mag44. Já foi anunciado que a influência do zamrock estará mais evidente no trabalho e Sampa diz que o álbum será uma expressão mais verdadeira de quem ela é. “Antes de começar a gravar, criei um modelo de paisagem sonora – um pequeno documento dos sons que gostaríamos de explorar e até onde iríamos. Assim que chegamos ao estúdio, ficou muito evidente o que queríamos fazer e passamos a maior parte do tempo curtindo o processo que deu origem a muitas músicas. Mag44 cresceu no país da minha inspiração musical. Era importante ter a influência da fonte para criar música híbrida e ele era o cara para fazer isso acontecer.”

Inspiração, transformação, representatividade, afrofuturismo, hip hop, protesto, negritude, ancestralidade, feminismo: um corpo africano que transborda tudo isso ao mesmo tempo estará diante de nós e o público brasileiro – que tem acesso – tem tudo para se deixar levar pelo ato revolucionário que é a simples existência de Sampa the Great. O povo preto se inspira e a branquitude interessada em se comprometer com o antirracismo há de se arrebatar pela potência de uma mulher preta em movimento.

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