Mulheres no poder

O bloco afro Ilú Obá de Min, patrimônio do carnaval de São Paulo, registra em disco a potência que leva para as ruas desde 2005 com uma bateria formada exclusivamente por mulheres. Repertório destaca ritmos ancestrais como ijexá, maracatu, bumba meu boi e ciranda e as letras se comprometem com lemas feministas e antirracistas.

Beth Beli, presidenta do Ilú Obá de Min, durante cortejo do carnaval de 2020

Ou se questiona e se rompe com a estrutura patriarcal que nos molda enquanto sociedade ou o apocalipse será inevitável. Até a música, essa Deusa, é afetada por esse sistema. Ignoramos que o ventre do samba é o quintal de Tia Ciata e que, muito provavelmente, ela seja coautora da primeira música gravada do gênero – “Pelo Telefone”, de 1917, creditada a Donga e Mauro de Almeida. Rainhas como Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara e Jovelina Pérola Negra tiveram de esperar por décadas até conseguirem gravar e ganhar algum reconhecimento ainda insuficiente às suas respectivas grandezas. Outras, como Clara Nunes e Elza Soares, mesmo que tenham conhecido a fama cedo, tiveram de enfrentar uma série de violências e preconceitos. Sequer sabemos os nomes de mães de santo e mestras de culturas populares que estruturam a MPB.

É preciso reescrever a história e o bloco afro Ilú Obá de Min tem feito sua parte. O protagonismo feminino é inerente à sua existência: sua bateria é formada por centenas de mulheres, em sua maioria pretas, e muitas de suas letras exaltam guerreiras brasileiras da arte, da política, do ativismo e da luta contra a escravidão. Leci Brandão, Mariana Crioula, Marielle Franco, Tereza de Benguela, Carolina Maria de Jesus, Luiza Mahin, Lia de Itamaracá, Benedita da Silva, Dandara dos Palmares, Raquel Trindade e Elza Soares estão entre as saudadas no álbum “Nossas Vozes, Nossos Cantos – 15 anos”. O conjunto de 16 canções reunidas no recém-lançado disco retumba com potência e convida tanto à dança quanto à reflexão. Ouvido filtra, mente absorve e o corpo balança.

Disco traz 16 faixas autorais do bloco afro

“A proposta do álbum ‘Nossas Vozes, Nossos Cantos’ é de trazer toda a trajetória do Ilú Obá De Min nesses 15 anos em que reverenciamos nossas femenageadas nas ruas da capital paulista – desde 2005 com a  Rainha Nzinga, e na sequência com Leci Brandão, Raquel Trindade, Candaces, Elza Soares e até 2019, com a  Lia de Itamaracá”, explica Beth Beli, uma das fundadoras e mestras do grupo. “Se faz necessário recontar as nossas histórias pretas com responsabilidade às nossas mulheres pretas. Se temos alguma dívida nesta história, são com as nossas ancestrais. Esse disco é por nós, pelas nossas e por todo legado que ainda temos que colocar em pauta – e, assim, construir obras de memórias para quem vem depois da gente. As nossas crianças pretas merecem seguir com o legado que o Ilú Obá De Min está construindo.”

Os arranjos se baseiam em percussão e vozes – formato que por si só remete à ancestralidade africana: houve um tempo em que não havia eletricidade, instrumentos elétricos, estúdios de gravação, computadores e softwares de áudio; mas havia música e ela se fazia com a mão no tambor e a força do gogó. Os toques apresentados pelo Ilú Obá de Min instiga nossa compreensão para ritmos estruturantes da música brasileira como maracatu, bumba meu boi, ciranda, jongo e ijexá; já os cantos soam como verdadeiros gritos de resistência e luta quase sempre com uma voz principal em destaque e contracantos em coro. É de se espantar a potência que o bloco alcança com alfaias, agogôs, xequerês, djembês e vozes. Quem não se emociona, sinceramente, está morto.

Ouça “Nossas Vozes, Nossos Cantos (15 Anos)”

O título faz referência aos 15 anos do bloco, completados em 2020, quando se previa uma grande comemoração à data. A pandemia, no entanto, frustrou os planos. Em 13 de maio de 2022, axé, o bloco voltou às ruas de São Paulo justamente na via do bairro do Bixiga que carrega a alcunha do dia da falsa abolição assinada pela Princesa Isabel. O cortejo inteiro foi embalado pela canção “Raízes”, um dos muitos hinos do grupo. O Ilú Obá de Min coloca em pauta as mentiras propagadas pelo racismo estrutural nas suas letras e em suas ações. É necessário.

Em ano de eleição, há quem ainda questione a estratégia da campanha de Lula em se posicionar sobre a necessidade de se regularizar o aborto. Não há cálculo eleitoral que justifique ignorar uma demanda tão urgente. Não é possível levar a sério uma candidatura que se diz progressista que não se posicione sobre as duas principais violências que estruturam e apodrecem os pilares da sociedade – o racismo e o machismo. O candidato que não se posiciona a esse respeito se torna conivente com ideias que sustentam o fascismo que está no poder. O acesso aos direitos básicos – educação, saúde, moradia, alimentação – tem de ser pensado sob o filtro do combate aos preconceitos que roubam a nossa humanidade. Qualquer projeto que se comprometa com redução da desigualdade, demarcação de terras, erradicação da fome, fomento à cultura, combate à intolerância religiosa e o acesso ao ensino tem de abraçar o feminismo e o antirracismo.

Se calar não pode ser uma estratégia. O bloco Ilú Obá de Min grita – seja nas ruas durante o carnaval ou no documento sonoro que se materializa em “Nossas Vozes, Nossos Cantos”. São muitos os lemas que saltam aos ouvidos nos versos que se fazem ouvir pelo coro de mulheres que vocifera em cada uma das faixas. Entre eles, pode-se destacar: “o medo acabou / vamos bater, batucar / mulheres guerreiras unidas / este mundo vamos dominar” em “Este Mundo Vamos Dominar”. Assim seja. “As nossas memórias musicais, corporais e tantas outras vindas de além mar são caminhos valiosíssimos para o legado da música popular brasileira e o registro desse disco, neste momento, é uma contribuição que ficará permanentemente gravada na história”, diz Beth Beli. “Trazemos  os ritmos do candomblé como base e entre todas encruzilhadas musicais deixadas por Clementina de Jesus, pelos sambas de roda do recôncavo baiano, pelos maracatus do Recife e até mesmo os ritmos do Império Mali. A música popular brasileira não seria tão rica sem o legado do continente africano.”

(Por Ramiro Zwetsch)

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