Herança e memória

Allan Abbadia lança o segundo disco solo da carreira, “Ifè”. O trabalho instrumental reverencia os maestros Abigail Moura, Letieres Leites, Moacir Santos e Pixinguinha e traz sete composições que evocam a ancestralidade africana. O trombonista e arranjador conversou com a Radiola Urbana: “o disco é feito de ritmos criados ou fragmentos de ritmos existentes. O segredo está na organização”. Confira!

Foto: Renata Teixeira

É o barulho do mar o primeiro som que ouvimos e reconhecemos em “Ifè”, segundo e recém-lançado álbum solo do trombonista paulistano Allan Abbadia. Instrumentista experiente, ele acumula participações em shows e gravações de alguns dos gigantes da música brasileira dos mais diversos gêneros: Beth Carvalho, Dona Ivone Lara, Elza Soares, Emicida, Jards Macalé, João Bosco, Luiz Melodia, Mano Brown, Nei Lopes, Tony Tornado e Zega Pagodinho estão entre eles. Sua abordagem como compositor nos oferece uma estética instrumental em que as águas de vários gêneros (samba, choro, jazz) convergem em uma mesma correnteza sonora – mestiça, brasileira e comprometida com a reconstrução da humanidade de um povo. Seu primeiro álbum, “Malungos” (2019), já evocava essa carga de ancestralidade que se aprofunda em “Ifè”. O trabalho teve show de lançamento no Sesc Pompeia, na sexta 14/04, e contou com a participação do mestre Sapopemba.

“‘Ifé’ é dedicado a quatro grandes maestros: Abigail Moura (1904 – 1970), Letieres Leite (1959 – 2021), Moacir Santos (1926 – 2006) e Pixinguinha (1897 – 1973). Podemos fazer uma linha histórica da música brasileira a partir da obra deles e de como eles assimilaram a linguagem da percussão da diáspora nas gravações”, diz o músico. “Eles não são somente maestros brasileiros – são afro-brasileiros. E todos eles sofreram apagamentos. Pixinguinha foi o primeiro arranjador com carteira assinada no Brasil e foi o primeiro a trazer a batucada para orquestração na Orquestra Típica Pixinguinha-Donga. Ele escrevia os arranjos a partir do sotaque da percussão. Orquestrar exige uma intelectualidade e a sociedade racista não queria essa imagem vinculada a um homem negro – por isso o enorme holofote a ele como compositor e instrumentista e não como orquestrador. Abigail Moura criou a Orquestra Afro-Brasileira, sonorizou diversas peças do Teatro Experimental do Negro e faleceu no completo ostracismo. Moacir Santos tem honras de grande maestro e é reconhecido por sua obra, mas até hoje não tem o disco ‘Coisas’ nas plataformas digitais. Letieres Leite, através da Rumpilezz, fez o resgate dessa tradição que a música negra tem. Esses maestros tiveram que transitar no mundo da escrita para se aproximar da oralidade da cultura de um povo. ‘Ifè’ é sobre herança e memória e cada um desses maestros inspira o disco na forma organizacional de se pensar música a partir do tambor e do corpo.”

Embora o trombone esteja no centro dos arranjos, o instrumento está apoiado na usina percussiva sustentada pelos músicos Alysson Bruno (tambor Rumpi e Rum), Fernando Alabê (tambores Rum e Lé e cuíca) e Thiago Sonho (bateria e tambor Gan) – os três estão presentes em seis das sete faixas do repertório. No show, o trio ganhou a companhia de Rapha Moreira, que divide com Neninho os diversos instrumentos na batucada que impulsiona a faixa “Resiliência”, a última do disco. Há músicas em que o naipe de metais envolve também flugelhron, flauta e sax. O violão de Maurício Paz é um outro pilar da instrumentação, a principal referência da parte harmônica. Piano elétrico e baixo (elétrico e acústico) acrescentam timbres e acordes à amalgama de sopros e tambores – a base estética que Allan herdou dos maestros que ele reverencia.

Foto: Sérgio Fernandes

“Ifè” avança e se aprofunda a partir do ponto que o músico chegou em “Malungos”. No trabalho anterior, havia uma distinção de cada ritmo abordado em cada faixa e o ouvinte leigo tem mais facilidade de identificar cada gênero musical abordado. Agora, salta os ouvidos a beleza dos arranjos elaborados a partir da riqueza da combinação de temas melódicos com toda uma diversidade rítmica. “‘Malungos’ é sobre os gêneros e manifestações que me formaram como músico: o choro, o samba, o baião, o maracatu, o ijexá e o lamento. É um disco de instrumentista”, explica. “‘Ifé’ é um disco de arranjador, sobre organização sonora preta, pensado a partir da circularidade e horizontalidade. Tocamos para os tambores: os ogãs e os atabaques são os grandes maestros desse trabalho – toda estética parte deles. Ele é composto de claves híbridas, ritmos em tempos ímpares e polirritmias. As peças estéticas estão interligadas como em uma engrenagem. O disco é feito de ritmos criados ou fragmentos de ritmos existentes. O segredo está na organização. Na música ‘Ubomi’, por exemplo, o atabaque Lé faz uma das claves do ritmo ijexá – mas não soa como tal porque precisaria de vários outros elementos.”

Embora seja complicado — e absolutamente desnecessário! — identificar um gênero que rotule cada uma das músicas, é notável a influência de Moacir Santos em “Memórias” e “De Flores” (Flores, inclusive, é a cidade onde o maestro pernambucano nasceu). Já o samba se insinua sem disfarce em “Resiliência” – tema que se impõe pela beleza da melodia e pela evolução da batucada, que ganha um fôlego a mais no meio do arranjo e leva a música para um cenário de sorrisos e brindes, distante da melancolia inspirada da primeira parte. “A música ‘Resiliência’ é uma crônica, um abraço, um colo, é o partido alto, é o violão do Carlinhos 7 Cordas, a bateria do Camisa Verde e Branca – tudo isso é sobre coletividade, sobre construir. É um partido alto lamentoso, esperançoso – nem triste, nem alegre. O samba é o que deu mais certo na diáspora”

Ifè é uma cidade no estado de Oxum, região sudoeste da Nigéria, que o povo yorubá reputa como o berço da humanidade. A palavra também significa “amor”, na língua yorubá. “A cidade é conhecida pelas ‘cabeças de ifè’, que são esculturas de metal em diversos tamanhos. O domínio do manejo do metal está intrinsicamente ligado à construção de alguns instrumentos como o Gan e também do desenvolvimento tecnológico do trombone na Europa”, explica Abbadia. “Escolhi esse título também pela representação de uma busca das minhas bases físicas atestadas e confirmadas pelo teste de DNA.”

A ancestralidade inunda “Ifè” em tudo: no conceito elaborado por seu compositor e arranjador; na musicalidade que evoca memórias de um tempo que não vivemos de corpo presente, mas que insiste em persistir na sociedade brasileira contemporânea; na reverência aos maestros de outras gerações; na fé que se pratica sob o toque dos atabaques nos terreiros e na erudição que existe – por mais que não se reconheça – na bateria de uma escola de samba. O trombone de Allan Abbadia é mais uma voz que se faz ouvir em meio a um discurso coletivo, cada vez mais alto e necessário – e ele não precisa de palavras escritas para engrossar esse coro.

“Cada som que ouço e que faço me causam emoção. Eu guardo essas emoções, visito elas e as organizo de acordo com o que eu quero passar – seja melodicamente, harmonicamente, ritmicamente ou ‘timbristicamente’”, diz o trombonista. “A música instrumental é uma folha em branco com um título. As sensações vão escrever o texto. É assim que minha música traz todo o resgate sem trazer a palavra em si. Existem múltiplas maneiras de compreensão musical além da letra que evocam memórias emocionais a partir do ritmo, da melodia, da harmonia e das texturas”.

O oceano que banha “Ifè” é muito mais que o infinito de água salgada que conecta continentes — é um cenário por onde navegam memórias, saudades e pessoas livres.

(Por Ramiro Zwetsch)

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