Pantera negra do afrobeat*

Essa entrevista foi publicada em fevereiro de 2018, pela revista Select. Sandra Izadore esteve no Brasil em novembro de 2017 para uma série de shows, encontros e palestras no mês da consciência negra. Pantera negra, ela foi responsável por fomentar a construção da consciência política de Fela Kuti. Leia!

Sandra Izsadore

Bem à frente de um grande homem, havia uma grande mulher. Quando Sandra Izsadore conheceu Fela Kuti em Los Angeles, em 1969, ela já era ativista do movimento negro desde 1965 e se indignou com a inocência do nigeriano, seu desinteresse por política e pela história da África e o bombardeou com broncas e livros. Essa influência foi crucial para o músico, que mais tarde se tornaria um dos artistas africanos mais contestadores da história.

Em 1976, em sua segunda visita à Nigéria, ela o encontrou completamente transformado. Ele já tinha mais de 15 discos lançados, inúmeros confrontos com a polícia local e já havia declarado a sua residência em Lagos um território independente do país – a República Kalakuta, onde vivia com suas 27 mulheres, além de familiares e músicos de sua banda. Àquela altura, sua obra já o consagrava como o criador do gênero afrobeat e seu inconformismo pulsava nas letras de suas músicas. Sandra estava lá para gravar o álbum Up Side Down, com produção de Fela. A experiência, no entanto, foi muito além e ela também teve que lidar com a poligamia do namorado nigeriano.

O ápice da tensão entre o músico e o governo nigeriano se deu em 1977, quando o exército invadiu a Kalakuta com mais de 1000 homens e incendiou  a casa. Na ocasião, mulheres foram estupradas e presas e a mãe de Fela Kuti, Funmilayo Kuti, foi arremessada de uma janela – e viria a morrer alguns meses depois em decorrência da agressão.

Sandra Izsadore esteve no Brasil em novembro de 2017 para uma série de shows, encontros e palestras no mês da consciência negra em Brasília, Salvador e São Paulo. Em seu show na capital paulista, ao lado banda brasileira Èkó Afrobeat, ela se despediu do público com a frase: “mulheres, vocês têm o poder”. É o seu mantra: tanto na palestra que deu no Centro de Formação e Pesquisa do SESC como na entrevista concedida à seLecT, ela usou as mesmas palavras para festejar a movimentação feminina nos Estados Unidos na denúncia aos assédios do empresário de Holywood Harvey Weinstein e para explicar sua influência sobre Fela Kuti (1938 – 1997): “na maioria das vezes, nós mulheres temos razão”.

Na sua palestra, você disse que sua participação nos Panteras Negras foi como estudante, não como líder. O que você aprendeu com eles?
A primeira coisa que aprendi foi sobre seu programa social e sobre o que a organização era. E era sobre proteger a comunidade. Também me ensinou sobre as injustiças que estavam ocorrendo contra os negros, o que me fez aprender sobre mim mesma e sobre a importância do nosso povo se juntar e se proteger das mentiras diárias. Eu era jovem, uma criança. Quando você está aprendendo, você não interrompe o professor. Você simplesmente sente e aprende.

Sabemos que as mulheres negras sofrem muitos tipos de opressão. Havia algum tipo de sexismo nos Panteras negras?
Nunca senti sexismo, eu sempre senti igual. Na verdade, eu ainda nem estava ciente do sexismo. Assim como eu ainda não tinha consciência do racismo. Não havia opressão na minha casa, havia igualdade entre meus pais. Quando cresci e fui ao mundo, descobri que havia um desequilíbrio entre homens e mulheres. As mulheres negras sofreram opressões de muitas maneiras desde a escravidão.

Você sofreu algum tipo de repressão policial quando estava com os Panteras Negras?
Não, eu tive meus próprios problemas com a polícia. Fui presa duas vezes. Na primeira situação, eu acredito que o FBI estava envolvido pois havia um homem tirando fotos e, na época, eles estavam reunindo informações sobre os ativistas negros. Eu chutei o homem e essa imagem apareceu na primeira página do jornal: eu chutando a bunda deste homem. Na outra situação, eu fui defender um homem negro que estava em uma cadeira de rodas e estava sendo atacado pela polícia durante uma manifestação.

Durante quanto tempo você foi uma Pantera Negra?
Eu ainda me considero uma. É como a minha cor de pele, não é algo que vai embora. Os encontros ainda acontecem em todo segundo domingo do mês, eles ainda se reúnem. Há um novo grupo com integrantes mais jovens. Não acompanho e não sei exatamente o que estão fazendo, mas já doei dinheiro para essa organização.

Angela Davis veio recentemente ao Brasil e fez um discurso muito emocionante em Salvador. Você a conheceu pessoalmente?
Não a conheci pessoalmente, mas tenho muita estima e muito respeito por ela pois é uma das nossas principais lutadoras. Na minha adolescência, eu tinha um altar com todas as pessoas que me iluminaram: Angela Davis, Queen Asantewaa, Marcus Garvey, Huey P. Newton, Stokely Carmichael e Nina Simone. Todos eles estavam na parede do meu quarto, eu dormia com eles.

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Você foi uma pessoa fundamental para a formação intelectual de Fela Kuti. Como aconteceu o primeiro encontro entre vocês?
Mulheres… Nós temos poder, sabe? Eu estava aprendendo sobre a nossa história, participando de várias reuniões. Quando conheci Fela, acreditava que tinha muito a aprender com um homem africano. Eu esperava que ele fosse um professor pra mim, sem saber que era eu tinha algo para ensinar a ele. Ele cantava em yoruba e eu queria entender suas letras. Ele me disse que era entretenimento. Eu disse, “você tem de mudar isso, você precisa conscientizar as pessoas e fazê-las crescer”. Depois, em outro momento, ele fez um comentário que me chocou. Nós sempre conversávamos à noite e durante uma discussão ele disse: “os homens africanos são estúpidos”. Ouvir aquilo de um homem africano, que eu esperava que me ensinasse sobre a cultura africana… Eu gritei com ele. Expliquei que a África foi o berço da civilização. “Antes de abrir sua maldita boca novamente, leia esse livro”, eu disse. E dei-lhe a biografia do Malcom X. Foi assim que tudo começou. Depois fiz ele ler Before The Mayflower – A History Of Black America (Lerone Bennett Jr.), Nikki Giovanni, Stolen Legacy (George G. M. James)…

Como este homem que foi filho de Funmilayo Kuti (pioneira do feminismo na Nigéria), poderia não ser politizado e não ter interesse no pan-africanismo?
Você deve se lembrar que Fela foi criado em uma casa cristã. Isso era algo que nós tínhamos em comum. Ele era um patife, que gostava da sua vida de músico, das festas. Mesmo vindo de uma família de pensadores e educadores… Sua família o mandou para a Inglaterra para estudar medicina mas, enquanto ele estava lá, seu interesse era todo em torno da música.

O seu primeiro encontro com Fela foi em 1969, em Los Angeles. Quando vocês se encontram de novo?
Ele partiu em abril ou março e em setembro eu fui para a Nigéria.

O homem que você reencontrou já estava transformado?
Na verdade não, mas a música já estava começando a mudar. Quando fui para a Nigéria em 1969, vi uma continuidade do processo que tinha iniciado em Los Angeles. Em 1976, sim, eu vi a explosão, era um Fela diferente.

Aqui no Brasil é muito difícil de entender a poligamia, não temos essa cultura aqui e hoje temos várias discussões em torno do feminismo. Muita gente entende que Fela era machista.
Pfff… Eu não acho que ele era machista. Não sei como é aqui, mas na África a poligamia é normal. Nos Estados Unidos, a monogamia é a norma. São duas culturas, dois pensamentos. Eu aprendi isso na Kalakuta, vivendo na casa com todas as mulheres de Fela, foi uma experiência maravilhosa pra mim. Eu gostava de conviver com as mulheres. Nós cozinhávamos e nos divertíamos juntas. Havia três mulheres que causavam problemas, que queriam toda atenção só pra elas. Uma delas se chamava Funmilayo, a outra era Najite e havia uma terceira que não morava na Kalakuta – ela estava sempre chorando porque não aceitava o fato de Fela ter várias mulheres. Era difícil pra mim também. Meu papel na vida de Fela foi o de uma irmã. Tínhamos uma relação, mas eu não sou o tipo de mulher que aceita dividir o homem com várias outras. Algumas mulheres não se importam de dividir o homem, outras querem direitos exclusivos. Eu gosto da exclusividade, certas coisas eu não aceito compartilhar. Pode me chamar de egoísta. Eu digo que as mulheres são mestres, especialmente se você está envolvido em uma relação heterossexual. Eu entendo que foi o poder da vagina que fez a mãe de Fela provocar a revolta contra o rei em Abekouta (Funmilayo Kuti liderou uma revolta na cidade nigeriana de Abekouta, que reuniu milhares de mulheres no final dos anos 40. Elas protestavam contra a cobrança de impostos às trabalhadoras do mercado municipal. Essa manifestação culminou na criação da Associação de Mulheres Nigerianas). Fela transformou sua mentalidade colonial para se tornar um verdadeiro homem negro, que transpira e passa sua mensagem adiante. E fui eu que mostrei isso a ele. Se eu fiz isso, qualquer mulher pode fazer o mesmo. Temos de reconhecer nossa força e nosso poder como fêmea. Na maioria das vezes, nós temos razão.

Viver na Kalakuta com Fela Kuti era uma forma de resistência para aquelas mulheres, não?
As mulheres de Fela não eram submissas. Elas tinham liberdade e viviam lá por escolha, muitas delas estavam se protegendo de situações horríveis. Algumas me falaram que estavam lá como refugiadas, pois nas ruas elas corriam o risco de ter seus clítoris mutilados. Havia graves violações aos direitos humanos na Nigéria e Fela acolheu essas mulheres em sua casa. Elas estavam lá por livre e espontânea vontade e podiam ir embora na hora que bem entendessem. Então, qual é a opressão? Onde está o machismo? Lá elas sabiam que teriam comida, um teto e que poderiam dormir em segurança. Se você opta em dormir com este homem sabendo que ele tem outras mulheres, o que há de sexista nisso?

(Por Ramiro Zwetsch, com colaboração de Pedro Rajão e Rosa Couto)
*entrevista publicada originalmente na revista Select, edição de fevereiro de 2018

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