Peito nu e punhal afiado

A Radiola Urbana adere, a seu modo, à série #AgoraÉQueSãoElas e traz textos da jornalista Lígia Nogueira sobre dois dos melhores discos brasileiros de 2015, lançados recentemente por mulheres de diferentes gerações: na quarta, 04-11, o assunto é “Selvática”, de Karina Buhr; na sexta, 06-11, ela discorre sobre “A Mulher do Fim do Mundo”, de Elza Soares. Ambos trabalhos reverberam questões femininas e feministas, com a urgência necessária ao tema. Estes textos foram publicados originalmente no “Guia da Folha: Livros, Discos, Filmes”. #foracunha #AgoraÉQueSãoElas #contraPL5069 #elasporelas

selvatica

Um grito de liberdade ecoa em cada verso de “Selvática”, novo disco de Karina Buhr (disponível para download gratuito em seu site oficial). A cantora e compositora, que este ano lançou também seu primeiro livro, “Desperdiçando Rima” (editora Rocco), e participou da edição mais recente da Flip (Feira Literária Internacional de Paraty), vinha exercitando a temática feminista na forma de textos e ilustrações até o álbum de agora, em que o tema é tratado com urgência punk.

Nascida na Bahia, a artista se mudou cedo para Pernambuco, onde fundou a banda de cantoras e percussionistas Comadre Fulozinha. Já em São Paulo, integrou o Teatro Oficina de Zé Celso Martinez e deu marcha à carreira solo com “Eu Menti Pra Você” (2010) e “Longe de Onde” (2011).

Em “Selvática”, Karina surge na capa, o peito nu, munida com um punhal, entre colar e pulseiras, como se vestida com as roupas de Jorge, sob a proteção da música e da natureza, em canções que extrapolam as fronteiras entre o rock e o regional.

Escolhido para abrir o álbum, o reggae “Dragão” soa manso, mas não demora para o confronto entre sagrado e profano dar as caras. “Eu Sou um Monstro”, que vem a seguir, afasta qualquer possibilidade de servidão: “Hoje eu não quero falar de beleza/ Ouvir você me chamar de princesa”, diz.

A guitarra de Fernando Catatau (integrante do Cidadão Instigado) se destaca em “Pic Nic”, em que as batidas rápidas acompanham os versos gritados pela autora, enquanto “Esôfago” soa como uma denúncia da violência contra a mulher. “Cerca de Prédio”, com participação de Cannibal, baixista e vocalista da banda pernambucana Devotos, escancara a especulação imobiliária, questão urbana das mais importantes e atuais, de São Paulo a Recife.

Em “Vela e Navalha”, um bolero torto, a formação mais frequente se mostra tão afiada quanto a voz que guia os músicos nesta cruzada sonora. Bruno Buarque (bateria, MPC e ganzá), MAU (baixo), André Lima (sintetizador e piano elétrico) e Victor Rice (violoncelo), todos produtores do disco, se unem aos guitarristas Fernando Catatau e Edgard Scandurra em uma provocativa fusão do eletrônico com o orgânico.

A sequência vem desaguar em “Rimã”, momento de poesia máxima, em que o trompete de Guizado encontra a guitarra de Manoel Cordeiro, um dos pioneiros da lambada no Pará, em uma espécie de ciranda que faz a letra girar, fluida e cheia de beleza.

Na mesma toada, “Desperdiço-te-me” é uma canção de amor em que Karina atinge o seu ápice vocal e literário: “Quando você botou o dedo/ no meu coração/ abriu um rio”. A música tem participação de Laura Lavieri em coros oníricos, mas a atmosfera de sonho logo dá lugar à apocalíptica faixa-título, que fecha o álbum com revelações quase proféticas narradas por Elke Maravilha. A atriz confere a “Selvática” um ar de fim do mundo, acompanhada pelo vocal de Denise Assumpção e da própria Karina, entre congas e sinos, e fumaça imaginária.

Está dado o recado, dolorido, mas libertador: “Esse carinho morno/ Que me dás de repente/ Vai te doer um mundo/ Minha querida”.

(Por Lígia Nogueira)

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